
Luciana Bessa
Não me lembro com precisão quando comecei a ler Machado de Assis (1839-1908), mas sei que não gostei. A linguagem rebuscada e o contexto histórico, século XIX, que aludiam suas narrativas, me eram completamente estranhos.
Na flor da mocidade, algo me intrigava: todos os teóricos brasileiros que eu encontrava pelo caminho destacavam o brilhantismo de Machado de Assis. Quando descobri que Harold Bloom (1930), crítico de literatura americana, descreveu Machado como “o maior gênio da literatura brasileira do século XIX” e “o maior escritor negro da história da literatura universal, eu disse a mim mesma: “garota, leia Machado de Assis”.
Foi o que fiz. Ouvi falar de uma possível traição de Capitu ao marido Bentinho. Resolvi começar a ler Dom Casmurro (1899). Com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, Capitu (“relativa a Capitólio” ou “a cabeça”) foi minha primeira paixão feminina na literatura brasileira. Minha primeira e única paixão da literatura francesa também foi por uma mulher: Ema Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880). Sei que existem personagens masculinos primorosos como Riobaldo (Grande Sertão: Veredas), Paulo Honório (São Bernado), capitão Rodrigo Cambará (Érico Veríssimo), mas, ainda são as mulheres que me despertam mais interesse, dado às narrativas estereotipadas criadas sobre elas ao longo da história. Nunca consegui acreditar no gênero feminino como frágil, indolente e submisso.
Quanto à Capitu, confesso que na flor da mocidade, desejei ter seus olhos, sua beleza, sua facilidade para sair de situações difíceis e sua força. Literatura, Tv, ópera, teatro e cinema: em qualquer formato, Capitu brilhou e transgrediu.
Minha segunda leitura machadiana foi Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), considerada o marco do Realismo brasileiro. Conhecer um narrador-defunto que conta sua própria trajetória me deixou espantada. Já a relação de Brás Cubas com as mulheres foi um caso à parte. Com Marcela imperava o desejo e o dinheiro, por isso, a triste constatação: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de reis”. Apostou em Eugênia por sua beleza, abandonou-a por sua deformidade. “Por que coxa se bonita”. Com Nhã-Loló não havia afeto, mas por se tratar de uma moça prendada, educada e de boa aparência seria possível construir uma “boa família”. Não é isso que se espera dos homens de bens? Mas ela falece e o projeto de Cubas também.
Mas, ele, por capricho, queria Virgília, que na juventude, abandonou-o por Lobo Neves. No momento em que as leis sociais os impediam de ficarem juntos, “agora é que nos amávamos deveras”. O caso dos amantes é descoberto. Virgília diz ao marido que se tratava de uma intriga política para desestabilizá-lo. Ao amante, não diz nada. O casal muda-se de cidade para evitar comentários maldosos. Virgília escreve uma última vez para Brás Cubas: pede que cuide de “Dona Plácida”, senhora que acobertava o caso extraconjugal deles.
Em minha segunda leitura machadiana comecei a me dar conta que as mulheres eram concebidas sobre o manto da beleza, do atrevimento, da sensualidade, da dissimulação, da frieza e da voluntariedade. Ou seja, deixava “no chinelo” as personagens do Romantismo concebidas pela idealização, subjetividade e sentimentalismo.
Para tirar a prova dos nove, completar a tríade machadiana e entender de fato se as personagens femininas machadianas eram transgressoras e senhoras do seu próprio destino, comecei a ler Quincas Borba (1891). Conheci Sofia (“sabedoria”, “conhecimento”), esposa de Cristiano Palha, uma mulher bonita, sensual e consciente de seu poder de atração. Além de dissimulada, gostava de ostentar luxo e de ser admirada pelos homens. O casal Palha conhece o professor de Barbacena, Rubião, que acaba de herdar a fortuna do amigo Quincas Borba, numa viagem de trem para o Rio de Janeiro. Com o consentimento do marido, Sofia se insinua para Rubião. Seu interesse é desfrutar, junto com o marido, do dinheiro e do prestígio do ingênuo ricaço. Quando Rubião se vê lindamente arruinado, ela lindamente se retira de cena.
Com essas personagens, Machado de Assis, leva-nos a refletir sobre o papel da mulher na sociedade, as violências por elas sofridas, a exclusão e o silenciamento a que foram submetidas por décadas.
Machado de Assis debateu sobre temas como o casamento, único modo de uma mulher ascender socialmente no século XIX, a felicidade conjugal, a beleza, o ciúme, a traição, a efemeridade do tempo, etc.
O mês é junino. Contudo, neste dia 21 de junho, é preciso exaltar a genialidade do Bruxo do Cosme Velho, que nos legou uma obra atemporal e multifacetada marcada por uma forte crítica social e protagonizada por mulheres à frente de seu tempo.