
Luciana Bessa
Não sei vocês, mas durante anos eu julguei a minha voz feia. Já fui uma dessas pessoas que entrava e saia de um espaço calada. Justificava para mim mesma que estava aprendendo mais ouvindo do que falando. O que não é de todo mentira.
Em uma sociedade em que todos têm algo importante a falar, mas poucos disponíveis para ouvir, apurar os ouvidos foi uma das formas que encontrei para aprender e, claro, me proteger.
É que falar é um modo de se expor. Em se expondo, ficamos mais suscetíveis a julgamentos e à vulnerabilidade. Bem, foi isso que pensei durante anos. Afinal, sou de uma geração que foi criada para não responder pai/mãe, para apanhar e não chorar, para não desacatar professores, para não rir alto, para escutar calada a conversa dos mais velhos.
Nesta caminhada de silenciamento, esqueci-me que a origem de tudo está na voz. Quando uma mulher engravida, um dos principais conselhos que ela recebe é: “converse com seu bebê”. O que você fala, ele/ela vai escutar. Quando nascemos, nossa voz é o choro. Através dele, falamos de nossos desconfortos e necessidades. Vamos crescendo e o que os nossos pais mais desejam: escutar nossa voz. Alguns casais chegam até disputar qual é a primeira palavra a ser proferida pela criança: “mamãe”, “papai”.
Até mesmo a literatura medieval foi, sobretudo, voz. Uma das principais características da poesia nessa época foi a sua relação com a música (a poesia era denominada de Cantiga), ou seja, a poesia era feita para ser cantada e o seu intérprete, além de poeta era cantor.
A fala precede a escrita. Ela continua sendo muito valorizada por estudiosos que acreditavam ser a Tradição Oral relevante para se conhecer a identidade mais profunda de um povo. Nesse sentido, destaca-se a importância da memória. Ela é “o centro vivo da tradição”. No período do Romantismo voltou-se a valorizar a tradição oral em Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano e no O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.
Uma das características mais marcantes na obra do escritor português José Saramago é a oralidade. O próprio escritor declarou que sua técnica narrativa provém de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. A oralidade é a mais antiga forma de comunicação entre os homens e pôr ser uma modalidade anterior a escrita foi, por um longo período, a única forma de transmissão de conhecimento, o que acontece hoje em algumas sociedades ágrafas.
Infelizmente as investigações literárias foram marcadas pelo registro escrito em detrimento do registro oral. Nesse sentido, ficaram marginalizados uma grande quantidade de textos orais como as lendas, os mitos e as anedotas. Na contemporaneidade, ainda temos fortemente a valorização do texto escrito.
Aqueles que dominam esse tipo de texto, geralmente, são vistos como intelectuais, como os mais inteligentes e assim acaba havendo uma segregação com aqueles que não dominam a arte da escrita.
O presidente Lula chegou a declarar certa vez: “Se eu perdesse a voz, estaria morto”. No caso dele, foi pela voz e não pela escrita que ele se tornou conhecido mundialmente e angariou milhares de seguidores. A voz é uma tradução da personalidade humana. Embora a escrita seja relevante, ela não é capaz de reproduzir fenômenos do texto oral como gestos e mímicas. Em todo o Ocidente, a escrita e o visual triunfam na cultura letrada e os valores da voz esmaecem.
Na prática, crescemos rodeadas de vozes alheias. Pai, mãe, irmãos (ãs), primos (as), tios (as), avós (as), chefe, palestrante. Com o tempo, comecei a categorizar vozes: bonitas e feias. As primeiras, elogiam e acolhem. As demais, julgam.
Às vezes, tenho a impressão de que são estas as mais escutadas, já que por medo do julgamento, não falamos o que pensamos para evitar conflitos, não vestimos determinadas roupas, não frequentamos determinados lugares, embora, brademos: “não me importo com o que vão falar de mim”, “sou eu quem pago as minhas contas”.
Sei que há alguns anos comecei a me escutar, a gostar (mais) da minha voz. Fiz até cursos de contação de história e de oratória para torná-la ainda mais bonita. Mas o que importa mesmo é usá-la para me expressar como desejo, para me colocar no mundo de forma cuidadosa, segura e empática.
Sobre a autora:

*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler (nordestinadosaler.com.br)