
Luciana Bessa
A primeira vez que fui apresentada ao Conto da Aia (1985), da escritora canadense Margaret Atwood, foi no clube de leitura – Ciranda do Livro – que acontecia mensalmente na Nobel, em Juazeiro do Norte.
Em 2020, a livraria fechou suas portas. Antes disso, a unidade do Crato já havia encerrado suas atividades. Dados da Associação Nacional das Livrarias (ANL) mostram que em 2014, o Brasil tinha 3095 livrarias no país; em 2021, eram 2200. Depois da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2024), pela primeira vez na história, o país tem mais não leitores do que leitores, é preciso rever esse último dado. São tantos os fatores que levam uma livraria a fechar, que vou deixar essa discussão para um outro momento e me concentrar na ficção de Atwood.
A segunda vez que escutei falar do Conto da Aia (1985) foi um convite para participar da discussão obra no projeto “Distocult” (hoje desativado), que tinha o propósito de debater distopias. Ao terminar de escutar a análise das 347 páginas, eu disse a mim mesma: chegou a hora de fazer sua própria leitura. Que experiência mais assombrosa!
O Conto da Aia (1985), como toda distopia (palavra grega que significa lugar doente, ruim, imperfeito), é ambientada em um futuro. O interessante em Atwood são que os fatos se passam apenas sete anos depois da data de publicação. Não é à toa que ela ficou conhecida como a “profeta da distopia”. Vale salientar que a obra em questão foi chamada de “ficção científica”, “literatura especulativa” (narrativas de cunho histórico), “distopias feministas”, marcadas por infernos de opressão masculina e violência contra a mulher. A autora nunca concordou com tais definições. Sempre preferiu afirmar que sua obra promovia uma mistura dos dois gêneros, utopia e distopia, gerando o que seria denominado “ustopia”.
Para ser mais precisa, Margaret Atwood afirmava em suas entrevistas que os fatos narrados no Conto da Aia (1985)nada têm de ficcionais. No período em que lançou o livro, ela levava uma pasta com recortes de jornais para provar ao entrevistador que sua obra nada tinha de ficção. Depois da primeira eleição do presidente Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2016, ano em que o livro vendeu como água para chocolate, a autora guardou seus recortes de jornalísticos.
Na obra, os acontecimentos se passam na República de Gilead, formada por castas, que antes foram os Estados Unidos da América. “Foi depois da catástrofe, quando mataram a tiros o presidente e metralharam o Congresso, e o exército declarou um estado de emergência. Na época, atribuíram a culpa aos fanáticos islâmicos. Mantenham a calma, diziam na televisão. Tudo está sob controle”. E a população não moveu uma palha para saber, ou se contrapor ao fato ocorrido. Em Gilead não há advogados, não há médicos que praticam aborto, não há universidades, livros, revistas. Os direitos da população foram retirados, especialmente, os das mulheres.
Não há como não lembrar da escritora Simone de Beauvoir, quando ela declara que os direitos das mulheres não são permanentes. Basta uma “crise política, econômica ou religiosa para que tais direitos sejam questionados”. Ou seja, precisamos estar vigilantes toda uma existência.
Quem nos conta toda essa história é a protagonista Offred (Ela não é “alguém”, ela é “de alguém”), uma mulher que perdeu a família com o golpe de Estado e agora é obrigada, assim como outras mulheres, a servir a ele com o seu bem mais precioso: o ventre. Ela é levada para o “Centro Vermelho”, um antigo ginásio, transformado em centro de treinamento para se tornar “aias”. Adestradas pelas “tias” (Lídia), as mulheres aprendem sua função na nova República: ser progenitora dos filhos dos Comandantes, já que as Esposas dele são inférteis.
As mulheres que desobedecem ao sistema de Gilead, aquelas que são consideradas inférteis, e a população LGBT são levadas paras as Colônias – áreas tóxicas, a exemplo das antigas zonas de guerra americana. Nota-se a total dominação masculina e o fundamentalismo religioso na obra: “Na horado almoço eram as Beatitudes. Bem-aventurado isso bem-aventurado aquilo. Elas punham para tocar uma gravação em disco, a voz era de um homem. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os misericordiosos. Bem-aventurados os mansos. Bem-aventurados os que se calam. Eu sabia que este último eles tinham inventado, sabia que estava errado, e que tinham excluído partes também, mas não havia nenhuma maneira de verificar”. Sem acesso aos livros, apenas pela palavra do outro, os “Filhos de Jacó”, contavam as narrativas bíblicas a seu bel-prazer. Como a memória é precária, a população da República de Gilead seguia acreditando e replicando.
O Conto da Aia (1985) é uma narrativa que tem a missão de provocar, chocar e fazer o leitor a sair de sua zona de conforto. É um grito de alerta para uma sociedade contemporânea fragilizada pelo sistema capitalista e pelo sistema religioso que insistem em dominar, vigiar e punir o povo. É um lembrete ao fortalecimento do sistema democrático e da preservação dos direitos humanos.
Sobre a autora:

*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler (nordestinadosaler.com.br)