
Émerson Cardoso
O Signo de Leão é generoso, forte e imprevisível. Para nosso debate, apresentamos uma escritora que produziu seus textos desde cedo (e até publicava alguns deles de forma esparsa), mas sua primeira obra foi publicada apenas quando ela contava com 76 anos de idade. Esse livro lhe proporcionou imprevisível sucesso e, de repente, ela se tornou conhecida no Brasil inteiro, de modo que estamos diante da autora cuja produção literária representa um dos maiores legados de nossa literatura brasileira: Cora Coralina.
Em verdade, ela se chamava Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, porém a vaidade leonina lhe fez optar por esse nome artístico (pseudônimo adotado ainda na adolescência) que a tornaria diferenciada das demais Anas da Cidade de Goiás, terra onde nasceu no dia 20 de agosto de 1889 e cuja padroeira era Sant’Ana — por isso, a popularidade do nome.
Sendo assim, Cora Coralina nasceu no terceiro decanato do Signo de Leão, isto é, tinha tendência à generosidade, à simpatia e à amabilidade. Além disso, trazia outras características: protetora, corajosa, líder e vaidosa. Por seu excesso de autoconfiança, portanto, ela esteve mais atenta a seu poder de realização do que a seus limites.
Na mitologia, o Signo de Leão está vinculado ao herói Hércules. Sendo filho da imortal Alcmena com Zeus, o deus do Olimpo, Hércules foi instigado pela ciumenta deusa Hera, irmã e esposa de Zeus, a matar a própria família e a realizar, depois disso, doze trabalhos, dentre os quais está o confronto com o Leão de Nemeia. Fera terrível cuja pele era invulnerável, esse animal causava medo nas pessoas e tornou-se um dos maiores desafios a serem enfrentados pelo semideus, que pediu auxílio a seu pai para matá-lo. Ao concluir a árdua tarefa, Hércules ofereceu o leão a seu pai, que elevou o animal e o transformou em constelação. A figura do leão que deve ser domado, em verdade, está vinculado à realidade do próprio Hércules, o semideus forte, impetuoso e violento, mas de bom coração. Após os acessos de fúria, ele sente culpa e, por isso, precisa passar pela experiência de compreender-se e humanizar-se. Por isso, ele concentra em si as características atribuídas aos nativos do Signo de Leão — um dos mais imprevisíveis dentre os signos zodiacais.
Alguns fatos da vida de Cora Coralina, essa relevante leonina de nossas letras nacionais, mostram o quão surpreendente e imprevisível ela foi. No âmbito pessoal, por exemplo, ela conheceu um homem que foi casado, era mais velho do que ela vinte e dois anos e, apesar do escândalo causado por essa relação no contexto de 1911, foi viver com ele no Sudeste — onde seus seis filhos nasceram. Em 1932, participou da Revolução Constitucionalista como costureira de uniformes e enfermeira. Sempre teve pendores para o comércio, de modo que foi: doceira, dona de restaurante, dona de pensão, vendedora de plantas, vendedora de livros etc. Em 1956, sendo viúva e comprometida com a escrita, ela retornou para sua cidade natal e passou a viver na casa velha da ponte, às margens do Rio Vermelho, na qual passou a vender seus famosos doces.
No âmbito literário, depois de intensas lutas em sua existência dedicada ao trabalho e à família, ela publicou, aos 75 anos, seu primeiro livro: Poemas dos becos de Goiás e outras estórias mais. Essa publicação, que se deu em 1965, não aconteceu com facilidade, conforme ela afirma (Coralina, 2012, p. 13): “Mais fácil, para mim, escrever um livro do que publicá-lo”. Apesar dos desafios, essa obra poética tornou-se uma das mais relevantes do Brasil no século XX. Já nas notas introdutórias, no texto intitulado Este livro, a autora comove quando deseja que seu livro chegue às “mãos operárias”, à “alma sertaneja”, às “mulheres marcadas da luz vermelha”, aos “presidiários” e à “gente moça”.
O poema que inicia a primeira parte do livro é intitulado Todas as vidas. Nele, a poeta apresenta um eu lírico feminino que concentra, com lirismo e sensibilidade, suas múltiplas facetas humanas, sobretudo no âmbito do ser mulher. Desse modo, o eu lírico apresenta-se como alguém que traz em si: “uma cabocla velha / de mau-olhado”, “a lavadeira do Rio Vermelho”, “a mulher cozinheira”, “a mulher do povo”, “a mulher roceira” e “a mulher da vida”.
A propósito dessa última mulher que a habita, essa temática é retomada no poema Mulher da vida, que consta na segunda parte do livro. Esse texto é comovente, porquanto coloca em pauta a figura feminina que se prostitui, no entanto o faz com um olhar de fraternidade e de compreensão que não daria espaço para julgamentos moralistas. Esse olhar está perpassado pelo universo cristão, como podemos comprovar pela alusão à cena descrita nos Evangelhos do Novo Testamento (Coralina, 2012, p. 154): “Aquele que estiver sem pecado / atire a primeira pedra”. O universo cristão fica marcado, também, pela passagem mencionada no final do poema (Mt 21, 31): “Declarou-lhe Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino dos Deus”. Ao abordar esse tema em seu livro de estreia, a autora foi ousada, porque, seja pelo contexto social no qual o livro foi publicado, seja pelo contexto político, o texto é compassivo, acolhedor e não se impregna de condenações diante da mulher que se prostitui. Se, na atualidade, embora em menor proporção, esses preconceitos ainda existem, no momento em que o livro foi escrito e publicado o cerceamento era bem maior.
Uma curiosidade em torno desse livro, que é pertinente mencionar, diz respeito ao fato de que Carlos Drummond de Andrade o leu e enviou uma carta para a autora. Nesse sentido, em 14 de julho de 1979, ele escreveu: “Não tendo seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do seu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina”.
O poeta mineiro tem razão ao referir-se a Cora Coralina como uma poeta cujo livro de estreia é “um encanto”. Após essa obra, a autora publicou outros livros que confirmaram sua maestria para as palavras: Meu livro de cordel (1976) e Vintém de cobre – meias confissões de Aninha (1983). Também foram publicados, postumamente, os livros: Tesouro da Casa Velha (1996) e Vila Boa de Goiás (2001).
Em Meu livro de cordel, de 1976, Cora Coralina remete-se ao gênero poemático evocado no título como uma forma de prestar homenagem ao povo nordestino, a quem ela se reporta como: “povo de minha casta” e “meus irmãos”. O livro dispõe de duas partes. Na segunda parte, marcadamente biográfica, consta o poema: Cora Coralina, quem é você? Nele, a autora cria um eu lírico com a nítida intenção de apontar aspectos biográficos. Surgem, desse modo, temas como: as origens, a infância, a adolescência, a época da escola, a escrita, o trabalho, as experiências familiares, os preconceitos, o destino, a poesia, o passado e o futuro etc.
Para ilustrar, ela menciona, no trecho seguinte, seu tempo de escola, ocasião em que foi aluna da mesma professora de sua mãe, a Mestra Silvina que dá título a um poema do livro anterior. Assim, é apresentada sua condição de criança em contexto escolar marcado por experiências entre instigantes e dolorosas, como é perceptível nos versos:
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.
Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.
(Coralina, 2002, p. 82–83)
Dos antigos métodos de ensino da Mestra Silvina às dificuldades com os números, a poeta aponta como foram sua escola e sua vida de menina pobre. Ao mesmo tempo, reverberam em seus versos a memória e a sensibilidade de uma autora sensível e mestra na arte de usar a palavra para construção de uma obra literária de valor estético incomensurável.
Para encerrar, seria pertinente dizer que Cora Coralina é uma poeta de memórias intensas e de maestria no uso das palavras. Ler sua obra é estar em contato com poemas de rara beleza e de valor sócio-histórico inegável, de modo que não poderemos esquecê-la jamais.
Salve Cora Coralina!
REFERÊNCIAS:
CORALINA, Cora. Meu livro de cordel. 11. ed. São Paulo: Global Editora, 2002.
__________. Poemas dos becos de Goiás e outras estórias mais. 12. ed. São Paulo: Global Editora, 2012.
Sobre o autor:

Émerson é de Juazeiro do Norte/CE. Pesquisador, professor e escritor. São de sua autoria: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011); os cordéis A Beata Luzia vai à guerra (2011) e A artesã do chapéu ou pequena biografia de Dona Maria Raquel (2012); A Revolta de Antonina (2015), A dança das contundências (2017), O Casarão sem Janelas (2018) e O baile das assimetrias (2021).