Do signo de virgem e suas análises conscienciosas: Zila Mamede

Émerson Cardoso

Criadora de uma produção literária notável em forma e em conteúdo, Zila Mamede é das autoras brasileiras mais admiráveis, embora ainda precise de maior visibilidade em torno de sua obra, sobretudo em âmbito nacional. Referência na área de Biblioteconomia do Rio Grande do Norte, além de sua atuação como bibliotecária, ela foi redatora, contadora e ensaísta, mas foi (e tem sido) como poeta que seu nome tornou-se merecidamente conhecido.Nascida na Paraíba–PB, Zila Mamede viveu maior parte da vida no Rio Grande do Norte–RN e, desse modo, tornou-se a voz feminina riograndense de maior relevo literário. Sensível, expressiva e atenta à construção da palavra esteticamente trabalhada, estamos diante de poeta complexa que dispõe de produção literária na qual conteúdo e forma harmonizam-se meticulosamente. Aliás, esse aspecto de sua obra é fruto de conscienciosas análises e de profundas especulações existenciais. Essas são, a propósito, as características mais marcantes da poesia dessa autora que é uma nativa singular do Signo de Virgem.

O Signo de Virgem é um dos três signos do elemento terra, no entanto parece destoar do componente de fixação dos demais signos desse elemento, pois gosta de viver a aventura de ser livre e não aceita fácil as imposições da existência cotidiana. Algo comum às pessoas virginianas é que elas tendem a ser: analíticas, observadoras, sensíveis, criativas, reflexivas, teimosas, controladoras, indecisas e dotadas de simplicidade e de intensa força mental. Zila Mamede, que nasceu no terceiro decanato, dispõe de espírito inventivo e de profunda sensibilidade, o que reverbera em sua poesia.

Na mitologia grega, esse signo é representado por Astreia, filha de Zeus e de Têmis (deusa da justiça e das leis eternas), que vivia na Terra enquanto os seres humanos não se permitiam à corrupção e à maldade. Nesse sentido, segundo Junito de Souza Brandão (1986, p. 2002): “Astreia é o nome da Virgem (a constelação) que viveu neste mundo à época da Idade do Ouro, difundindo entre os homens os sentimentos de paz, justiça e bondade. Mas, tendo os mortais se degenerado, Astreia deixou a Terra e subiu ao Céu, onde foi transformada na Constelação da Virgem”. Temos, dessa maneira, o arquétipo da bondade, da justiça e da pureza que são conseguidas à custa de análise sensível, atenta e conscienciosa.

A conscienciosidade em Zila Mamede manifesta-se, de forma nítida, em sua obra. Assim, merecem atenção suas publicações: Rosa de pedra (1953), Salinas (1958), O arado (1959), Exercício da palavra (1975), Corpo a corpo (1978) e A herança (1984).

Na concepção de Marize Castro (2023, n.p.), a poesia de Zila Mamede é “plena de paixão e de rigor”. Desse modo, se, por um lado, há intensidade de emoções e de sensibilidades na escolhas das temáticas abordadas, por outro lado, o trabalho com a linguagem e com a forma poemática é primoroso. Estamos diante de uma autora que evidencia (e isso fica nítido à medida que a autora alcança a maturidade) a busca pelo equilíbrio de forças no âmbito da escrita. Sua obra de estreia, Rosa de pedra, foi publicada quando ela dispunha de 25 anos de idade. Nela, já se apresenta o estilo entre lírico e sóbrio perseguido pela autora.

Sua primeira obra é rica em imagens sonoras que muito nos lembram o Simbolismo e suas reverberações. Ela adota, também, a forma clássica do soneto, mas não se prende às exigências de rima dessa forma poemática, o que aponta para certa necessidade de expressar-se mais livremente. As rupturas estéticas do modernismo tornam-se cada vez mais presentes em seus textos e chega ao ápice nas obras realizadas após O arado que, para muitos, é a obra definidora da maturidade estético-estilística da autora.

Na concepção de Marize Castro (2023, n.p.): “Desde o primeiro livro, Rosa de Pedra, até o último, A Herança, Zila Mamede evocou a ideia de regresso”. Ela diz, além disso, que a poeta indica que “regressar é o convite à viagem”. Viagem, sobretudo em Rosa de pedra, pelo mar. As imagens marítimas, enfatizamos, são exploradas recorrentemente nesse livro. Dividido em duas partes (intituladas Marés de Infância e Mar Absoluto), temos em todo o livro poemas que apresentam palavras do campo semântico marítimo, no entanto queremos destacar um poema da segunda parte: Canção do sonho oceânico.

Marize Castro aponta que nesse poema a autora “profetizou o fim de sua existência”. Sim, porque ela faleceu no dia 13 de dezembro de 1985 em decorrência de afogamento. Ao realizar natação, como era seu costume, na Praia do Forte (localizada em Natal–RN, nas imediações do Forte dos Reis Magos), ela sofreu afogamento. Seu corpo foi encontrado, posteriormente, repleto de sargaços na Praia da Redinha (a mais de 5 km do ponto de partida). Alguns textos alusivos a esse acontecimento tendem a apontar que ele se deu na Praia do Meio ou na Praia do Forte. Optamos pela versão apresentada por Diógenes da Cunha Lima. Na crônica Triste fim da poeta do mar, Diógenes da Cunha Lima (2017, n.p.) relata esse acontecimento trágico:

Devota de Santa Luzia, no dia consagrado a ela, em um 13 de dezembro, saiu da sua residência no edifício coincidentemente chamado “Caminho do Mar” para ir à Praia do Forte. Não se sabe como, mas seu corpo navegou por sobre arrecifes, atravessou o Potengi e aportou na Praia da Redinha. O mar, que fora seu mais sensível tema, foi para ela arrebatamento, fascinação, fantasia, êxtase.

O corpo intacto, identificado por amigos, dentre os quais a escritora Eulália Duarte Barros, estava coberto de sargaço. No seu poema “Mar Morto” está: “Parado, mar morto da minha infância / sem sombras e nem lembranças e sargaços”.

Já em “Canção do Afogado”, ela arremata: “Cabelos de musgos / lavados de espumas / caminha o afogado / que o mar conquistou” (Lima, 2017, n.p.).

Em Canção do sonho oceânico, como assinala Marize Castro, “a poeta, aos 25 anos de idade, profetizou o fim de sua existência”. Nesse sentido, é emblemático o que a voz lírica apresenta na estrofe seguinte:

Irei brincar com fantasmas

os governantes do mar.

falarei línguas das ondas,

cantarei canções marujas,

escreverei meus poemas

 nos lábios dos caramujos:

levá-los-ão chuvas, ventos

aos peixes e caravelas

que brincarão de cirandas

nos recôncavos do mar.

Dormi o sono dos deuses

no ventre dos sete mares.

despertei boiando acácias

deixadas por navegantes

que tocaram meus caminhos

em naves feitas de sonhos.

Passai marujos, passai

que não voltarei do mar:

oceânica persisto;

sou produto desse mar

que compus nas minhas mãos

da verdura do meu sangue,

das águas dos olhos meus.

Como pois ser continente

Se fui nascida no mar?

(Mamede, 2023, p. 45)

Com esse trecho, podemos perceber ao menos três aspectos: 1) a criação de imagens sonoras que tornam o texto rico em musicalidade (o uso de sons nasais /m/, /n/ e /ão/ representam o tom melancólico presente no texto, enquanto o uso de sons fricativos e vibrantes evocam o movimento e a fluidez das águas e do vento); 2) o apuro formal, isto é, a autora constrói versos com sete sílabas poéticas (as denominadas redondilhas maiores) e 3) a abordagem obsessiva do mar como temática por excelência do texto (essa imagem se repete ao longo do livro, mas é sempre desenvolvida com lirismo e com expressividade).

Além do livro de estreia da autora, merece atenção, neste momento, o livro O arado. Câmara Cascudo (2023, p. 11), que o prefaciou, comenta: “A moça da cidade, de rio e mar, foi seduzida pelo silêncio das searas, a labuta do amanhecer, os bois adormecidos, o cavalo branco abandonado, as visões avoengas da casa-grande, plantada no meio do mundo vegetal e resistindo na perpetuação dos invernos e das esperanças”. Nele, estão em pauta telurismo e memórias da infância, também imagens afetivas de familiares, como no poema em que a autora retoma a avó:

O alto (a avó)

A adolescer ainda novo teto

ganhara, conduzindo nos cabelos

abandonados, um tranquilo sol.

Acrescentara ao dote a flauta azul

(com que saudara tardes e rebanhos)

e seu chinelo feito em flor e lã.

Das fibras do algodão, por entre dedos,

no fuso aconchegara brancos fios

de que tecera rendas infantis

e varandal de redes. Camarinhas

cercaram-lhe mistérios maternais:

espera, medo, alumbramento, amor.

Mas seu cantar desfez-se no caminho

sem chegar mais que aos nascituros filhos

— estrela, uma de agosto a viu morrer.

Herdei a deslembrança de seus olhos

e dessa flauta que tocara à noite

vertendo paz e sono a meu avô.

(Mamede, 2023, p. 18)

Este poema, um dos mais líricos do livro, aponta para aspectos da vida da avó, uma figura feminina que compõe, afetivamente, o universo existencial da voz lírica. Nessa perspectiva, segundo Câmara Cascudo (2023, p. 13): “Zila Mamede reencontra na Terra o encanto informe e concordante com a sua própria vida interior. Os poemas são frutos da terra e das almas, as almas poéticas que vivem em Zila Mamede, alma lírica, alma irônica, alma sonhadora, alma que espera, alma que confia”.  

Estamos diante de uma escritora que impressiona pela força e pela expressividade. Nesse sentido, Diógenes da Cunha Lima (2017, n.p.) comenta que: “A obra da Poeta do Mar não é transmitida e nem estudada nas escolas, não ganhou a merecida dimensão nacional. Mas, não pode ser esquecida neste Rio Grande, estado em que desejava ter nascido e ao qual legou o melhor da sua organização literária e a sua criatividade poética”. Se isso ocorre, de fato, é lamentável, porque estamos certos de que Zila Mamede legou ao Brasil produção poética das mais imaginativas e esteticamente trabalhadas.

Sendo assim, o Nordestinados a Ler, em sua missão de propagar a arte da palavra construída no Nordeste (mas também em outros espaços do Brasil), tem, com esse texto, participado da nobre missão de tornar conhecida a poesia dessa grande escritora que, assim como o mar, nos convida a mergulhar no sublime lençol das ondas que materializam a força intempestiva e suave das águas.

Para encerrar, devemos considerar que Zila Mamede é a poeta dos temas oceânicos, da terra enquanto espaço de memórias, das experiências sensoriais que se debatem nas pedras da existência e dos mistérios insondáveis que se fazem vivos no deslizar das águas salgadas banhadas de sol, areia e algas.

Este texto, portanto, é um convite-pedido-intimação: leia a obra dessa autora, pois ela não pode ser esquecida! Como Astreia, a virgem da mitologia que se refugia no céu, Zila Mamede reina nas bem-aventuranças celestes e aquáticas, sempre com demonstrações fraternas materializadas em poesias encantadoras. Seria uma pena que as pessoas do Brasil existissem sem ter experimentado a lírica dessa poeta potiguar de grandes potenciais artísticos e humanos — busque conhecê-la!

Salve Zila Mamede!

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega – Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1986.  

CASCUDO, Câmara. Notas de Luís da Câmara Cascudo. In: MAMEDE, Zila. O arado. Natal: EDUFRN, 2023.

CASTRO, Marize. Orelha da Coleção Zila, toda poesia. In: MAMEDE, Zila. O arado. Natal: EDUFRN, 2023.

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

LIMA, Diógenes da Cunha. Triste fim da poeta do mar. 2017. Disponível em: https://www.pontodevistaonline.com.br/triste-fim-da-poeta-mar-diogenes-da-cunha-lima/. Acesso em: 06 out. 2025.

MAMEDE, Zila. O arado. Natal: EDUFRN, 2023.

________. Rosa de pedra. Natal: EDUFRN, 2023.

Sobre o autor:

Émerson é de Juazeiro do Norte/CE. Pesquisador, professor e escritor. São de sua autoria: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011)os cordéis A Beata Luzia vai à guerra (2011) e A artesã do chapéu ou pequena biografia de Dona Maria Raquel (2012); A Revolta de Antonina (2015), A dança das contundências (2017), O Casarão sem Janelas (2018) e  O baile das assimetrias (2021).