Do signo de libra e suas reverberações estéticas:

Júlia Lopes de Almeida

Na Literatura Brasileira há um nome que não pode ser esquecido: Júlia Lopes de Almeida. Tentaram fazê-lo, porque o cânone literário nacional fechou-se, por muito tempo, à produção literária de mulheres. Ainda que esse processo tivesse pretensões de justificar exclusões por uma suposta ausência de apuro conteudístico-formal na obra dessas autoras, isso não poderia se aplicar, em absoluto, à obra de Júlia Lopes de Almeida.

Nascida em 24 de setembro de 1862, no Rio de Janeiro, Júlia Lopes de Almeida produziu, dentre outros gêneros: poemas, peças teatrais, romances, contos e crônicas. Foi na produção de narrativas, porém, que a autora se notabilizou como uma das maiores do país. É estranho pensar que sua obra obteve reconhecimento no contexto em que ela atuou e, com o passar dos anos, sofreu certo apagamento. Desse modo, ela chegou ao século XXI como uma autora cuja obra precisou ser retirada do esquecimento. Quando seus romances foram retomados em novas edições, no entanto, foi inevitável a percepção de que estávamos diante de uma exímia analista da realidade brasileira do século XIX e início do século XX.

Júlia Lopes de Almeida nasceu sob o Signo de Libra, isto é, o signo que não dispõe de uma mitologia correspondente, pois as estrelas vinculadas ao símbolo da balança eram partes das garras da constelação de Escorpião. Apesar disso, é possível associá-lo a vários mitos alusivos a contextos nos quais aparecem a ideia do julgamento. O primeiro deles, tem a ver com Têmis, a deusa da justiça, que é mãe da deusa Astreia (na mitologia, esta é a figura feminina que representa o Signo de Virgem). Quando Astreia foi ao céu, sob as honras de Zeus, ela subiu com sua balança: símbolo das leis que devem trazer justiça, paz e harmonia para o mundo. Além disso, o Signo de Libra é associado às deusas Palas Athena, Hera e Afrodite, que levaram o mortal Páris à morada dos deuses para que ele julgasse qual delas era a deusa mais bela (Páris escolheu Afrodite quando esta lhe prometeu o amor da mulher mais bonita, que era Helena, esposa de Menelau, e cujo rapto desencadeou a Guerra de Troia).

Sendo assim, as pessoas desse signo tendem a apresentar senso de justiça, senso estético, refinamento, diplomacia no trato social e vaidade. É comum que elas disponham de natureza artística. Se existem aspectos indigestos nesse signo, isso tem a ver com o fato de que, na excessiva busca de serem harmoniosos e diplomáticos, seus nativos podem ser indecisos, influenciáveis e dados a certa neutralidade que exaspera quem exige deles tomadas de decisão e comprometimentos acirrados. Esses conflitos, talvez, venham da necessidade de manter o equilíbrio acima de tudo.

Será que foi por isso que Júlia Lopes de Almeida não fez escarcéus quando ela, que esteve envolvida no processo de criação da Academia Brasileira de Letras, ficou de fora para, em seu lugar, entrar o marido? Realmente, ela não se rebelou diretamente diante da injustiça, mas passou a enfatizar cada vez mais, em seus debates, a presença de figuras femininas cujas existências colocavam-se em constante luta para manterem-se firmes no mundo moldado pelo patriarcalismo e suas facetas cerceadoras.

Júlia Lopes de Almeida é uma das Três Júlias que integra, com Francisca Júlia e Júlia Cortines, uma simbólica trindade literária, de autoria feminina, que legou às letras nacionais — no final do século XIX e início do século XX — obras-primas em prosa e em poesia. A primeira autora brasileira a produzir Literatura Infantil, ela aponta, em sua obra, para o cuidado no âmbito da linguagem (que se manifesta pelo apuro no uso da língua e pela retomada de marcas linguísticas das personagens) e para a capacidade de observação contundente, precisa e realista das relações humanas em um país lastreado por desigualdades socioeconômicas.

Dentre as obras da autora, estão: Contos infantis (1886, em parceria com a irmã Adelina Lopes Vieira), Traços e luminuras (1887), A família Medeiros (1892), A viúva Simões (1897), Memórias de Marta (1899), A falência (1901), Ânsia eterna (1903), A intrusa (1908), A herança (1909), Cruel amor (1911), A Silveirinha (1913), Correio da roça (1913), Era uma vez… (1917), A isca (1922), Pássaro tonto (1934) e O funil do diabo (1934). Como podemos constatar, essa libriana devotada à arte da palavra produziu intensamente.

Sendo do primeiro decanato de Libra, Júlia Lopes de Almeida tinha tendência a uma energia contagiante, mas também à serenidade que a tornava figura fascinante. Além de grande escritora, foi abolicionista, crítica do patriarcado e afeita à observação da realidade nacional com propostas de denúncia. Isso fica nítido em dois dos romances da autora cujas enredísticas são, em tudo, marcantes.

Comecemos pela discussão em torno do romance Memórias de Martha. Publicado em 1899, a narradora-personagem conta como conseguiu sair do cortiço (espaço de extrema pobreza e indicativo do caótico processo de crescimento dos centros urbanos brasileiros) no qual vivia com sua mãe (também chamada Martha). Nesse romance, a protagonista encontra, pela educação, possibilidades de sair da vida de sofrimentos vivenciada por ela e por outras famílias destituídas, em tudo, de amparo social.

A relação entre mãe e filha é um dos momentos altos dessa obra, pois há, por parte de ambas, enquanto mulheres atiradas em contexto de desamparo e de marginalização, a necessidade de proteção mútua (esse aspecto da narrativa se dá em atmosfera de profunda humanização das personagens). Ao mesmo tempo em que o afeto intensifica a experiência na relação mãe e filha, no derredor do cortiço imperam processos de desumanização, pobreza, violência e desolação existencial. Tudo é apresentado, pela narradora de forma contundente. A educação, como apontamos, torna-se o meio através do qual ela pode, enfim, fugir de uma existência de privações e de traumas.    

Em meio à luta para construir novos horizontes de vida, Martha se depara com a passagem da infância para a vida adulta com as implicações inerentes à existência da mulher que, por uma série de entraves psicossociais, se depara com as dores do amor não correspondido e com os desafios de existir quando a mente faz a leitura de si e do mundo como instâncias insustentáveis. Lírico, contundente e repleto de humanidade, esse romance mimetiza a condição da mulher no século XIX com maestria. Diante dos desafios da vida, a narradora-personagem afirma (Almeida, 2025, p. 16): “O primeiro passo é sempre o mais difícil em uma vereda desconhecida. Habitua-se a gente a tudo, até ao perigo, até à humilhação”.

O romance A falência, por sua vez, que foi publicado em 1901, é considerado pela crítica a obra-prima da autora. Isso faz sentido, pois estamos diante de um romance que deve ser inserido no âmbito das grandes produções do Realismo e do Naturalismo. Nesse contexto de produção literária marcadamente masculino, Júlia Lopes de Almeida poderia se inserir, inequivocamente, como um dos principais nomes.

Estão em pauta, nesse romance, inúmeras representações femininas. Nele, as mulheres são delineadas, em sua maioria, pela quebra de expectativa do que viria a ser mulher no contexto mimetizado na obra. Narrado em terceira pessoa, o romance traz, na figura de Camila, a protagonista, reflexões sobre casamento, autonomia da mulher e adultério feminino. Camila é casada com Francisco Teodoro e amante de Gervásio. Uma das cenas mais provocativas do livro, a propósito, envolve a ousadia na manifestação de adultério de Camila, conforme percebemos no trecho (Almeida, 2019, p. 27): “Nina, encostada à grade, via Mário afastar-se; e lá em cima, no terraço, ao lado do marido adormecido, Camila curvou-se para o dr. Gervásio e beijou-o na boca”.

Merece destaque, além da ousada Camila, a tríade feminina que desponta nesse universo de falências: Noca (a empregada dedicada e sincera), Nina (sobrinha de Camila e espécie de governanta da casa) e Ruth (a rebelde filha do casal Camila e Francisco Teodoro). Elas, quando o status familiar desmorona, são as bases para a sobrevivência da família. Vale ressaltar, além disso, que: o racismo é criticado na obra por meio da personagem Sancha e a hipocrisia religiosa é criticada por meio das personagens velhas D. Joana e D. Itelvina. Em todo o enredo, surgem debates acerca do racismo decorrente do sistema de escravização, do capitalismo e seus projetos de exploração do sujeito, da desolação moral das instituições burguesas (dentre elas o casamento),  da condição da mulher na sociedade brasileira, dentre outros temas relevantes que a autora trata sempre com maestria — maestria perceptível no conteúdo e na forma.  

Para encerrar, seria pertinente dizer que Júlia Lopes de Almeida é uma escritora consciente do seu papel histórico e do uso das palavras — isso a tornou uma das maiores vozes de nossa literatura brasileira. Ler sua obra é estar em contato com o que há de mais belo, imaginativo e reflexivo em nossa literatura. Apagar o valor estético de sua obra é perder uma experiência de leitura significativa demais para ser desprezada. Conclamamos o Brasil, portanto, a ler e a debater a obra dessa escritora grandiosa!  

Salve Júlia Lopes de Almeida!

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Júlia Lopes de. A falência. Jandira: Ciranda Cultural, 2019.

_________. Memórias de Martha. Jandira: Principis, 2025.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega – Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1986.  

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

YOSHIDA, Roberto. O mito da constelação de libra. 2023. Disponível em:  https://constelar.com.br/colunas/ceu/mito-de-libra/. Acesso em: 30 out. 2025.

Sobre o autor:

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso é doutor, mestre, especialista e graduado em Letras. Publicou: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011), Romanceiro do Norte Juazeiro (2014), A Revolta de Antonina (2015), O Casarão sem Janelas (2018), O baile das assimetrias (2021/2022), Jornadas (2023), Romanceiros (2024) e Trilogia para o Cariri Cearense (2025). Recebeu: menção honrosa no XX Prêmio Ideal Clube de Poesia (2018); prêmio no VII Prêmio SESC de Contos; prêmio no I Prêmio Literário Demócrito Rocha–Categoria Poesia (2024); destaque no XXIV Prêmio Ideal Clube de Poesia (2024) e foi finalista do V Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura (2024). Foi um dos organizadores dos livros: Antologia Poética: Escritores do Cariri (2019) e Poemates Rosarvm (2019). Organizou os livros: Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem poesia: Manifesto Poético (2024) e Haicai-Cariri: antologia de haicai (2025).