
A leitura é uma ferramenta de aprendizado, transformação e subversão. Não se sai incólume, quando se ler. Para além do conhecimento do (s) outro (s), a leitura gera um conhecimento de si. Sua natureza é ampla, diversa e significativa. A leitura pode ser entendida tanto como um momento de meditação, como de apropriação do mundo interior/exterior.
Ler é uma prática pessoal e intransferível. O leitor, a convite do escritor, é um desafiador do universo das insubmissas palavras e o único responsável por suas próprias leituras. Para ser escritor é imprescindível ser, antes de tudo, um leitor. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), além de contista, cronista, ensaísta, crítico literário e poeta, foi antes de tudo, um leitor/escritor sensível e arguto de seu tempo.
O menino Carlito desde a “Infância” caminhava sozinho “entre mangueiras” e “lia a história de Robinson Crusoé, / comprida história que não acaba mais”. Ler é um ato solitário que amplia nossas experiências e nos coloca em contato com diferentes mundos. Conhecendo outras histórias, pensamos a nossa própria e os valores que norteiam nossa vida em sociedade.
Em Tempo, Vida, Poesia (2003), uma gostosa e esclarecedora conversa entre o poeta gauche e a amiga Lya Cavalcante, é perguntado a Drummond sobre as imagens que contribuíram para que ele se tornasse um escritor. O autor de A Rosa do Povo (1945) responde que sua primeira reminiscência literária não é de um texto literário, mas de uma personagem de romance: Robinson Crusoé. (…) “Creio que lhe devo minha primeira emoção literária, pois quando Robinson conseguiu se mandar da ilha, senti um nó na garganta: eu queria que ele continuasse lá o resto da vida, solitário e dominador (…)”. Ler o poeta mineiro é entrar em contato com algumas dores, é se sentir instigado a desvendar alguns enigmas, é se deparar com o sentimento de saudade, é conhecer múltiplos tipos de amores, é dialogar com diferentes artes, é entender que obstáculos podem ser vencidos, em especial, que a poesia é uma arma de comunicação e de resistência.
Oriundo de uma família abastada, essa experiência com leitura somente foi possível, porque Carlito tinha acesso a revistas e livros. Dentre os benefícios da leitura está a capacidade de autonomia, reflexão e emancipação adquirida pelas vivências do sujeito. Autoconhecimento, criticidade e fortalecimento existencial são próprios de quem ler.
A leitura foi primazia para o menino Carlos: para além das revistas e dos livros, leu o cotidiano de sua vida pacata e “besta” do interior (Poema “Cidadezinha Qualquer”), os encontros e desencontros do amor (Poema “Toada do Amor”), a incapacidade de escrever poesia na modernidade em que os homens não evoluem “e matam-se como percevejos” (Poema “O Sobrevivente”). A leitura foi também uma forma que Drummond encontrou para resistir a uma poesia classicizante, europeizada e marcada por regras rígidas e, dessa forma, escrever uma poética forjada na ironia, no senso de humor, no poema-piada, no poema de circunstância e na captura do cotidiano. O prosaísmo de sua obra denota uma expressão autêntica do poeta, que transcende o tempo e o espaço e atinge a universalidade
Em “Poesia” – “Gastei uma hora pensando em um verso / que a pena não quer escrever. / No entanto ele está cá dentro / inquieto, vivo. / Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento / inunda minha vida inteira”, ele nos mostra toda a sua dificuldade em compor um único verso. O antipoético torna-se poético, pois esse momento desarmônico entre o pensar e o escrever é puramente poético e “inunda minha [sua] vida inteira”.
No poema “Explicação”, Drummond tem consciência de “ser filho de fazendeiro”, do lugar onde nasceu e do seu temperamento arredio e solitário “Quem me fez assim foi minha gente e minha terra / e eu gosto bem de ter nascido com essa tara”, sobretudo de seu processo de criação literária: “Meu verso é minha consolação. Meu verso é minha cachaça (…). Meu verso me agrada sempre…”. A poesia era tudo, praticamente, tudo para Drummond. Por meio dela, existiu e resistiu as pedras no meio do seu caminho: anos de chumbo, morte do filho Marcos Flávio etc.
A leitura é um importante processo de transformação pessoal. Ler pressupõe escrever. Quanto mais lemos, maior nossa capacidade de expressão, comunicação e de resistência a uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais, em que os falsos patriotas arquitetam e promovem ações contra o Brasil para se manter no poder, em que tudo é transformado em mercadoria, pela automatização do sujeito e pelo individualismo exacerbado.
sobre a autora:

*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler (nordestinadosaler.com.br)
