Shirley Pinheiro
A leitura de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão me pegou desprevenida. Em linhas gerais, já conhecia o enredo, a história de duas irmãs que tomam rumos diferentes na vida, mas que ambas vivem infelizes com suas escolhas. Bem, isso é o que está nos resumos da obra nos sites de compra. O que eu não esperava, é que nas primeiras páginas, quando a autora, Martha Batalha, introduz suas primeiras notas, eu já estaria de olhos marejados e completamente entregue à obra.
“Mas o mais real deste livro está na vida das duas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. Aparecem nas festas de Natal, onde passam a maior parte do tempo sentadas, com o guardanapinho nas mãos. São as primeiras a chegar e as primeiras a ir embora. Comentam sobre os temperos do bolinho de bacalhau, sobre os calores ou chuvas do dia, sobre o vinho que algumas tomam, mas não muito, não muito. Perguntam se o marido vai bem, se a sobrinha-neta já tem namorado, se o sobrinho-neto está encaminhado. Algumas precisam de ajuda para sair do sofá e se sentar na mesa de jantar. Muitas já perderam o apetite, e encaram com desinteresse as fatias de peru. Outras se animam na hora da sobremesa, porque rabanadas são sempre bem-vindas. Voltam quietinhas para o sofá e olham os jovens abrindo os presentes, com um jeito de quem só consegue ver o passado.
Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós”.
A história de Eurídice Gusmão, bem como a de sua irmã Guida, de sua vizinha Zélia, de sua ajudante de costura D. Maricotinha, são as histórias de muitas outras mulheres, não só nossas avós, mas nossas mães, tias, amigas, que foram submetidas a uma convenção social que lhes podaram os talentos, os sonhos e as perspectivas, que nunca foram muito boas àquelas designadas como “o sexo frágil”. Todas mulheres que poderiam ter sido.
“E aqui o leitor se pergunta: será que todas as mulheres nesta história são tristes ou amargas? De jeito nenhum. Algumas conhecidas de Eurídice tiveram sorte. Isaltina gostava de bordar e tinha o privilégio de rir com dentes perfeitos, o que ela fazia com bastante constância, porque tinha um marido com quem gostava de conversar e que era capaz de pagar a conta do dentista. Margarida era viúva e muito feliz, porque Deus lhe tomou o marido mas deixou-lhe a pensão, e que alívio que não foi o contrário. Celina não se casou, mas teve uma boa herança. Também tinha um bom amigo, que via às quartas e sextas”.
Em uma rotina marcada pela invisibilidade opressora, Eurídice tenta se reinventar e dar sentido ao “nada” que volta e meia a vida se torna. Ela é casada com Antenor Campelo, um funcionário do Banco do Brasil, incapaz de tirar a cebola do próprio prato, para quem, não havia nada mais inútil que a poesia, e que se indignou com a esposa por não ver o lençol sujo de sangue na noite de núpcias, chamando-a de vagabunda para a rua inteira ouvir. Os filhos, Cecília e Afonso, não eram trabalhosos, mas não reconheciam os esforços da mãe.
Para dar sentido à vida, Eurídice inventa projetos. O primeiro é um livro de receitas, ao qual dedica as horas do seu dia, criando, testando, anotando receitas (de bolos, sopas e molhos) e sonhando — “Seu caderno de receitas era um livro pronto; ela queria publicá-lo, e quem sabe fazer outro em seguida. Eurídice poderia ter um programa culinário na rádio, poderia assinar uma página no Jornal das Moças! Poderia abrir um curso de forno e fogão para mocinhas recém-casadas. Seus olhos grandes ficaram maiores. Era possível, só precisava falar com Antenor”. Quem dera fosse tão simples. A reação do marido, como era de se esperar, foi de desdém, desestimulando e ridicularizando os sonhos da esposa — “Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma dona de casa?”.
Eurídice se conforma (por um tempo), não confronta o marido, nem o manda catar coquinhos, como sugere a narradora páginas depois, mas não demora muito até que se meta em um novo projeto, dessa vez, um ateliê de costura. É a duras penas que nossa protagonista consegue convencer Antenor a comprar a máquina que precisava para suas mais novas criações, uma Singer que ela adquiriu no centro da cidade, usando seu vestido de sair ligeiramente apertado. Mas quem disse que ela ligou? Estava mais interessada nos dias em que estaria tão empenhada aprendendo o “costurês” que esqueceria de comer. E quando a criação de roupas para si, para os filhos e para o marido se tornou obsoleta, Eurídice estendeu a produção para as mulheres da vizinhança. Mas novamente é coibida por Antenor, o provedor da família, que estava ali para botar dinheiro em casa, sujar os pratos e desfazer a cama, sem se importar em como foram lavadas as roupas, nem como foi feita a comida — “Então eu me mato de trabalhar naquele banco pra você ter do bom e do melhor e descubro essa feira livre aqui em casa? […] O seu trabalho é cuidar da casa e das crianças. […] Eu preciso de uma mulher dedicada ao lar. É sua responsabilidade me dar paz de espírito pra eu sair e trazer o salário pra casa. Você tem ideia de como é complicado trabalhar na área de financiamentos? […] Uma boa esposa não arranja projetos paralelos. Uma boa esposa só tem olhos para o marido e os filhos. Eu tenho que ter tranquilidade pra trabalhar, você tem que cuidar das crianças”.
Naquele dia, toda a vizinhança soube o que se passava na casa dos Gusmão Campelo. Diante da negativa do direito de costurar e trabalhar, Eurídice passou a ficar horas encarando a estante de livros da sala da sala de estar. Tornou-se a “mulher comportada, do jeito que Antenor queria. Uma mulher dedicada à casa e às crianças, e que agora se deitava na mesma hora que ele, e não se levantava mais cedo para se entreter com a máquina de costura. Uma mulher que permanecia calada ao seu lado enquanto ele assistia à TV, e que lhe oferecia a testa olhando ligeiramente para baixo, quando ele saía ou chegava do trabalho. Era tudo o que Antenor sempre quis”.
Esta era “a parte de Eurídice que não queria que Eurídice fosse Eurídice”, que surgiu ainda na adolescência, quando sua irmã mais velha, Guida, fugiu de casa para viver o grande amor de sua vida, um amor que não vingou, durou até surgirem as primeiras dificuldades financeiras, quando foi abandonada grávida, sem ter para onde ir, nem para onde voltar. Foi nessa época que Eurídice decidiu que não decepcionaria os pais, desistindo dos próprios sonhos e projetos aos quais já se dedicava — “Eurídice jamais seria uma engenheira, nunca poria os pés num laboratório e não ousaria escrever versos”.
Mas antes de se entregar ao silêncio por completo, Eurídice se dedica a mais um projeto. Foi por ficar tempo demais encarando a estante repleta de livros, “meio songa, meio monga, meio morta”, que Eurídice vestiu sua roupa de sair, dessa vez para comprar uma máquina de escrever — “‘Estou escrevendo um livro. É sobre a história da invisibilidade.’ O jantar seguiu em silêncio. Ninguém se importou em saber mais sobre o livro, se por acaso ela queria ver a obra publicada, se era uma história de amor ou de aventura, e quem era ela para começar a escrever assim”.
A escrita de Martha Batalha encanta por seu estilo único, a autora conta a história de todos os personagens secundários, permitindo não só a compreensão de cada um, mas também aproximando as problemáticas na formação do caráter dos mesmos com as experiências do próprio leitor, sejam elas em suas próprias vivências ou pelas vivências de terceiros, afinal, quem não conhece alguém que descobriu “que a vida não é tão feliz assim”, quando percebeu que não conseguiria suportar a opressão social por simplesmente “não ser bonita”, como aconteceu com a Zélia, que deixou de ser uma criança alegre e sonhadora e se tornou uma mulher amargurada, como muitas outras que aparecem na obra. Publicada em 2016, a história ganhou uma adaptação cinematográfica em 2019, além de ter seus direitos vendidos para editoras estrangeiras e já traduzida para o inglês. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é um livro cuja leitura virtual não é suficiente, e torna necessária a experiência sensorial de tê-lo na estante, sentir o cheiro, as páginas e, principalmente, revisitá-lo com a frequência exigida por uma obra na categoria de “favoritas”.