Shirley Pinheiro
“Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”.
(Art. 2º do Estatuto da Academia Brasileira de Letras)
A posição feminina na sociedade é algo que vem sendo desconstruída gradativamente. As lutas das mulheres e as ondas feministas foram as principais responsáveis pelas conquistas já alcançadas. Se hoje as mulheres têm direito ao voto, ao trabalho remunerado e até mesmo aos estudos, antigamente estavam legadas somente à opressão das relações hierárquicas do patriarcalismo, sempre sob posse do pai, irmão ou marido.
Socialmente relegadas e desvalorizadas, as mulheres foram impedidas de acessar várias esferas da sociedade, principalmente os espaços letrados. À escola, só foi permitido o acesso feminino em 1827, já ao ensino superior, só puderam ingressar a partir de 1879. Em 1930, foi recusada a inscrição da escritora Amélia Beviláqua para ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), primeira mulher a tentar fazer parte da instituição.
Criada em 20 de julho de 1897, a partir dos moldes da Academia Francesa, a Academia Brasileira de Letras é uma instituição cultural, cujo principal objetivo é preservar a língua e as histórias brasileiras, bem como sua memória cultural. Nas palavras do escritor Machado de Assis, primeiro presidente da ABL, em seu discurso de posse — “Não é preciso definir esta instituição, iniciada por um moço, aceita e completada por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis”.
À época, Júlia Lopes de Almeida, uma das maiores escritoras brasileiras, estava entre o grupo de fundadores da ABL e chegou a ser cogitada para ocupar uma das cadeiras da instituição. No entanto, logo foi preterida. O motivo? Seu gênero. A cadeira que deveria ser sua, passou a pertencer ao seu marido, o poeta Filinto de Almeida. A justificativa foi a mesma para barrar a entrada de Beviláqua, o termo brasileiros, presente no terceiro artigo do estatuto da Academia, se referia a indivíduos do gênero masculino. Em seu discurso de posse, Dinah Silveira relembrou o acontecido diante dos seus colegas imortais — “As excluídas não protestaram, por excessiva modéstia ou por desdenhosa altivez. E mais de trinta anos decorreram até que uma mulher de letras, esposa de um acadêmico, resolveu reivindicar um lugar ao pé do ilustre marido, o eminente jurista Clóvis Beviláqua. Embora autora de vários livros, um deles muito elogiado por Sílvio Romero num dos estudos de Provocações e Debates, D. Amélia de Freitas Beviláqua não teve sua candidatura aceita à vaga de Alfredo Pujol”.
125 anos depois de sua criação, apenas nove, dentre os cerca de trezentos membros (fundadores, patronos e ocupantes) que passaram pela ABL, foram mulheres. E o questionamento que fica é: quais histórias e memórias estão sendo preservadas se todos os que a contam pertencem ao mesmo (pequeno) grupo social (homens brancos e abastados)?
As portas da ABL só foram abertas para as mulheres em 1977, com a entrada da cearense Rachel de Queiroz, sucedida respectivamente por Dinah Silveira (1980), Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009), Rosiska Darcy (2013) e Fernanda Montenegro (2021).
Mas se o número de mulheres que entraram na instituição é reduzido, os das que foram rejeitadas, ou sequer cogitadas, são o oposto. Dentre as mais injustiçadas (na opinião de quem escreve) estão Clarice Lispector e Conceição Evaristo, duas das maiores e mais influentes escritoras da Literatura Brasileira. Evaristo, vencedora do prêmio Jabuti, em 2015, chegou a concorrer pela cadeira deixada por Nelson Pereira dos Santos, mas foi preterida e o escolhido foi o cineasta Cacá Diegues. Se tivesse sido escolhida, Conceição Evaristo seria a primeira mulher negra a fazer parte do grupo de imortais da ABL.
Pessoas racializadas também foram desprezadas pela instituição. Em 2021, com a chegada do cantor e ex-ministro da cultura, Gilberto Gil, para ocupar a cadeira nº 20, sucedendo o Acadêmico Murilo Melo Filho, a Academia somou ao seu elenco, o terceiro homem negro a se tornar um de seus imortais. O que falar então de membros indígenas e das outras etnias que compõem o povo brasileiro, ou de escritores queers?
Em uma época em que se fala tanto em diversidade e representatividade, a maior instituição literária brasileira, que se propõe justamente preservar a memória e cultura do povo, se detém apenas à manutenção de estereótipos ultrapassados, com raras exceções.
FONTES:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Estatuto. Disponível em: <https://www.academia.org.br/academia/estatuto>. Acesso em: 20 de jul. de 2022.
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Machado de Assis: Discurso de Posse. Disponível em: <https://www.academia.org.br/academicos/machado-de-assis/discurso-de-posse>. Acesso em: 20 de jul. de 2022.
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Dinah Silveira de Queiroz: Discurso de Posse. Disponível em: <https://www.academia.org.br/academicos/dinah-silveira-de-queiroz/discurso-de-posse>. Acesso em: 20 de jul. de 2022