Shirley Pinheiro*
Descobri que morávamos na mesma rua, na noite em que caiu a primeira chuva de dezembro. De longe, sua casa, uma construção comum, portas e janelas pouco convidativas, iluminara-se à luz dos faróis que nela adentrava. Até aquele momento, eu já sabia de cor a placa e o modelo do seu carro e pouco me surpreendia o adesivo do Padre Cícero, colado na traseira. Desde então, gastava minhas caminhadas a procurá-la, numa esperança insana de que nossos destinos, tantas vezes generosos, nos proporcionassem um desencontro ao acaso.
E eu ainda consigo contar nos dedos, as vezes em que, na pressa do trânsito, tive um vislumbre da tua velocidade. Migalhas para os meus desejos. Banquetes consumados.
Mas ali, com os pingos da chuva se insinuando sobre o meu cabelo e o escuro tomando de volta sua posse, senti as pontas dos meus dedos tremendo. Choque, surpresa e expectativa se acumulando em meus batimentos cardíacos e atrapalhando o andamento da minha respiração. Continuei meu trajeto de volta pra casa, em um paradoxo de contentamento e desolação, como se todos os meus desejos tivessem ficado para trás. O ouro de tolo escorrendo em minhas mãos.
Eis a ânsia de ter e o tédio de possuir.
A primeira flor que coloquei em sua janela foi uma tentativa desesperada de reparar o mistério. As pétalas grandes e amarelas, banhadas pelo orvalho noturno resgatavam o desconhecido, num gesto singelo, secreto e platônico. As próximas viriam azuis, laranjas, rosas, vermelhas e violetas, que eu colhia na praça, nos jardins dos vizinhos, no muro do hospital, ou roubava das floriculturas.
Toda noite, uma flor na janela dela. Toda manhã, uma flor em sua mão. A rotina de um sentimento anistiado por Lulu Santos, belo e abstrato, sem sequer intenção de acontecer.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
*Graduada em Letras pela Universidade Regional do Cariri.