
Luciana Bessa
Alforrias, obra poética da escritora baiana Rita Santana, publicada em 2012, traz vinte e oito poemas e um convite aos leitores: compartilhar da caminhada de um sujeito lírico que imprime à obra tonalidades afrodescentes.
Além de vocábulos – “ancestrais”, “moleque”, “quilombolas”, “alambique” – esse tom já é perceptível no próprio título: “alforrias”. O maior desejo dos escravizados era conseguir sua “carta de alforria”, documento que oficializava sua liberdade. Outra conotação que o termo traz é a liberdade em relação ao homem amado, ao sentimento amoroso. Assim como o bardo português, Luís Vaz de Camões, se estiver presa é “por vontade” e nada mais.
Rita Santana convidou outra poeta, Hilda Hilst, para participar da obra dela por meio do poema, colocado como epígrafe, “Sobre a tua face” (2004): “(…) Peço-te como o luzir dos ossos/ Com a fragilidade de uma espuma n’água / Que me visites antes do adeus da minha palavra”. O eu lírico clama com todas as suas forças que o homem amado possa visitá-la antes que ela passe para um outro plano.
Após a epígrafe, há o prefácio da escritora e professora Lígia Telles que destaca em Alforrias (2012), “ a existência de uma voz inequivocadamente lírica, que se deixa perceber pelo formato como são percebidos os poemas que integram e pelas peculiaridades com que são tecidas essas vozes”. Ou seja, estamos diante de uma voz – Rita Santana – que apresenta várias camadas que atravessam o universo feminino: sensorial, físico, tátil.
Os vinte e oito poemas encontram-se em ordem alfabética. No primeiro, somos apresentados “A escriba”, um texto de treze versos, em que o eu lírico, antes de sucumbir o “despenhadeiro da Finitude”, “cumpriu o seu grito de fogo”. Claramente observa-se a força do feminino mesmo diante da morte. Interessante notar o vocábulo “escriba” – profissional que na Antiguidade e na Idade Média, dominava a escrita. Por isso, podia exercer funções como copista, arquivista, secretário. Como as mulheres eram impedidas de ler e de escrever, salvo as raríssimas exceções, ser escriba era uma função masculina. Na contemporaneidade, Rita Santana mostra-nos que não.
O segundo poema, “Abismação”, encontro das palavras abismo+ admiração, o eu lírico, na primeira estrofe, se encontra na “abismação de cada instante” (…) “arrastada no levante dos meus [seus] ancestrais”, que na condição de “Quilombola” tece “algodão doce” / “Das dúvidas” / “Dos dias”.
Na segunda estrofe, o homem amado é chamado de “moleque dos meus [seus] desmazelos”, enquanto ela estar a labutar na “plantação de mandioca” fiando “a alforria” dos seus cometimentos, isto é, planejando libertar-se do amor que a aprisiona.
No poema “Andorinha”, trata-se dessas aves que existem, que saíram “das páginas dos livro” e que “resolveram viver”, enquanto o eu lírico sente uma “puríssima dor” com a “ausência” do homem amado dentro dela. O sentimento de vazio é tamanho que não há nada que “suavize a melancolia parasita nos ossos”. Na última estrofe do poema, a separação não é só dos corpos, mas também de lugar. Ele foi para “Creta”, ela para o “Crato”. Ver o nome do município onde resido, mais do que um vocábulo para criar rima, é uma oportunidade para que o leitor possa conhecer esta cidade que transborda cultura. Desde o momento que li “Andorinha”, fico imaginado o rosto desse sujeito lírico melancolicamente caminhando pelas mesmas ruas por onde passo, no “anonimato dos dias” tecendo “poesia secreta / E prosadeira”.
Na impossibilidade de falar de todos os textos, quero terminar com o poema À sombra do divino”, dividido em três estrofes, em que o eu lírico começa questionando: “A quem dedicar versos, se estou só?”. A solidão é dos temas recorrentes dos poetas, que vê neste estado de espírito, uma forma de buscar sentido para existir e resistir ante às intempéries. Na segunda estrofe, o sujeito lírico coloca-se na posição de nada ter: “Sou aquela moça da janela / Sem namorado, sem amantes, / Sem projetos, / Sem teto / sem concretos fingimentos”, inerentes aos poetas como nos dirá Fernando Pessoa. Diante do vazio, o medo: “Se a poesia resolveu abandonar-me?”. Caso isso aconteça, resta viver à sombra do divino, ou seja, a morte.
Alforrias (2012) é um convite ao leitor para transitar pelo universo poético de um sujeito lírico que transborda o amor lírico, a solidão, a dor, o erotismo, a vontade de viver livremente corpo-alma.
Sobre a autora:

*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler (nordestinadosaler.com.br)