Ludimilla Barreira*
Neste mês de agosto, comemoramos o 18º aniversário da Lei Maria da Penha. É inquestionável o avanço jurídico-social proporcionado às mulheres após a positivação de regras que buscam abranger as minúcias dos relacionamentos, que fundamentalmente deveriam ter como base o respeito, a dignidade e o equilíbrio. Por esse motivo, a cor escolhida para representar a campanha de luta contra a violência é o lilás, associada a valores essenciais para a construção de uma sociedade mais igualitária.
Porém, muitas são as violências possíveis a serem perpetradas contra uma mulher, temos algumas apontadas nesse dispositivo de proteção, mas que se restringem a relações específicas, prevendo desde agressões física até aquelas manipulações mais sutis, que mesmo sem deixar marcas e cicatrizes aparentes, permitem um apagamento do íntimo de suas vítimas ao silenciar suas manifestações espontâneas. Além dessas, há muitas outras inominadas, que nem sempre percorrem a trilha das relações íntimas, domésticas e familiares, mas ocorrem em círculos que guardam semelhança por serem ambientes em que as mulheres deveriam sentir segurança.
Paripasso ao desenvolvimento social, a performance dos agressores se refina para se manter sempre ativa e convincente, travestida de boas intenções, mas carregada de fúria. Para garantir a eficácia de suas ações, muitas vezes legitimam seus atos através de interpretações duvidosas de textos que, para muitos, são sagrados, e manipulam o livre-arbítrio ao seu bel-prazer. Passamos do tempo em que mulheres eram queimadas em grandes labaredas, cujas chamas refletiam nos olhares admirados pelo espetáculo de crueldade e ávidos pela penalização. No entanto, mesmo que o escárnio em praça pública pareça ter ficado no passado, ainda hoje encontramos fogueiras, mas não do tipo que queimam corpos; são aquelas em que somos jogadas e espezinhadas pelas opiniões.
Há sempre grandes riscos em narrativas únicas, principalmente quando há uma ínfima parcela de possibilidade em abalar as estruturas dos pilares que sustentam as comunidades. Ainda que esses pilares sejam revestidos com novos acabamentos para demonstrar uma aproximação com o presente, é fato que a estrutura permanece a mesma e, por isso, a forma como qualquer ameaça é tratada continua imperturbada. A verdade seja dita, o que entristece é o fato de outras mulheres apoiarem esse discurso ímpar criado por homens que não dão a mínima importância para uma História de luta feminina. Afinal, para esses indivíduos o importante é manter o poder e a dominação, a qualquer custo.
Daí, a mesma plateia que ovaciona palavras de força às mulheres nos discursos técnicos, recheados de um apoio ilusório – pois claro, são feitos por homens –, chega ao “Setembro Amarelo”, mês de prevenção ao suicídio, sem pausa para uma reflexão profunda sobre o quanto todos colaboramos com a dúvida, dor e desespero de quem é apontado como responsável pelo pecado e levado à fogueira. Não há mais morte pública; o que temos é uma passagem silenciosa, amordaçada e cheia de culpa, pois permanece a certeza de que realmente há algo de muito errado com quem se tornou protagonista da opinião alheia.
Quando nos damos conta da morte, muitas vezes nem precisamos da materialidade. Há muitos corpos apenas vagando pela terra, os pés pisam e não sentem, a boca se torna apenas um poço vazio. Não há vida onde se desacredita nela. Nem todas conseguem ser o “capim que verga e a espada não corta”, há quem tente apenas ser árvore frondosa, mas acaba com sua copa podada no tempo errado para que nunca mais dê fruto.
Com o tempo as pessoas esquecem, os de memória infalível lembram sempre, mas dão menos importância, sempre haverá um novo assunto para enriquecer esse espírito pobre, mas quem carrega a cicatriz jamais permanecerá a mesma, quando a passagem acontece a culpa a mantém na desgraça. Que ironia: não estamos sozinhos, a culpa nunca é única, sempre será coletiva. Lembre! Hoje, pode ser ela queimando. Amanhã, poderemos ser eu ou você.
Sobre a autora:
Ludimilla Barreira
*Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.