Shirley Pinheiro
“Num casarão antigo, situado na Alameda Santos número 8, nasci, cresci e passei parte de minha adolescência”.
Zélia Gattai nasceu em 2 de julho de 1916, em São Paulo, a maior metrópole da América Latina. E, como narra, em sua obra de estréia, Anarquistas, Graças a Deus (1979),morou por muito tempo na rua Alameda dos Santos, vizinha da grande Avenida paulista, junto de seus pais — Ernesto Gattai e Dona Angelina — e irmãos — Wanda, Vera, Tito e Remo. Sua infância foi marcada pelas sessões de cinema mudo, pelas leituras e pelas mudanças (sociais, políticas e tecnológicas) que aconteciam na capital paulista.
Escritora, memorialista e fotógrafa, nas suas obras, em sua maioria autobiográficas, Zélia Gattai narra os acontecimentos que marcaram os diferentes períodos de sua vida. Em Anarquistas, Graças a Deus, podemos acompanhar seus primeiros anos de vida, as revoluções sociais do século XX, a chegada do Estado Novo, o crescimento de São Paulo; em A Casa do Rio Vermelho (1999), ela narra sua mudança para a Bahia onde passa a viver ao lado de seu marido, Jorge Amado. Na obra, ela conta a busca pela casa perfeita, um espaço mais tranquilo para criar os filhos e um ponto de encontro de escritores e intelectuais da época.
Zélia Gattai começou a escrever aos 63 anos por incentivo dos familiares e por quase 30 anos escreveu quinze livros, dez de memórias, quatro infantis e um romance. Um de seus maiores incentivadores foi Jorge Amado, seu companheiro de vida e de lutas.
Por isso, é impossível falar de Zélia Gattai, sem falar de Jorge Amado. E foi lendo as suas obras que Zélia se apaixonou por ele. Em Anarquistas Graças a Deus, ela conta que foi o italiano Oreste Ristóri que lhe apresentou a obra do baiano, o livro Cacau (1933), ainda na adolescência, e aí foi amor à primeira vista leitura. Anos mais tarde, quando o mundo se deparava com a crueldade humana em sua forma mais crua, durante a II Guerra Mundial e o Brasil se via novamente frente à democracia, com a primeira eleição verdadeiramente democrática da nossa história, na qual as mulheres votavam pela primeira vez e ajudavam a eleger Eurico Gaspar Dutra para presidente da república, os dois se encontraram pessoalmente pela primeira vez. À época, Zélia já tinha lido todos os livros de Jorge. Pouco tempo depois os dois passaram a morar juntos, mas só puderam oficializar a união em 1976, quando o divórcio se tornou possível no Brasil, libertando ambos de seus casamentos anteriores. A união do casal foi vitalícia e, além de sua companheira, Zélia se tornou revisora e datilógrafa dos livros de Jorge Amado.
Em 2001, Zélia assumiu a cadeira nº 23 da Academia Brasileira de Letras (ABL), lugar que pertenceu ao seu marido, numa eleição que não foi livre de polêmicas e críticas daqueles que anularam o mérito de sua escrita ao fato de ser casada com um escritor influente e que consideraram sua entrada na ABL mais como uma homenagem ao seu falecido marido, do que uma conquista como a excelente escritora que foi.
Zélia Gattai foi uma mulher de força, que enfrentou ativamente a repressão política do século XX, por anos, viveu em exílio pela Europa, em companhia dos filhos e do marido. Nem o machismo de sua profissão conseguiu lhe parar, foi eleita imortal por mais duas instituições — Academia Ilheense de Letras e Academia de Letras da Bahia. A casa onde morava é, hoje, um memorial aberto à visitação, bem como, suas obras, memórias abertas à apreciação.