Luciana Bessa*
A família, como é sabido, é o primeiro e o principal grupo familiar que nós humanos integramos. É preciso divisar a família que temos e a família que desejamos. Essa instituição, espaço de contradições, conflitos e harmonia, ao longo dos séculos, tem sido defendida pela Igreja, pelo Estado, sobremaneira, por seus membros para manter um status quo social. Para conservá-la intacta já foram cometidas inúmeras atrocidades, na realidade ou na ficção.
A escritora cearense Natércia Campos (1938-2004), filha do contista Moreira Campos, sempre gostou de ler e de escrever. Contudo, somente ao se tornar avó decidiu compartilhar seus escritos com o público. Estreou na literatura com uma obra de contos, Iluminuras (1988), prêmio na 4ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. Em seguida, outras obras e premiações: Camões e Cervantes (1998), Noite das Fogueiras (1998), A Casa (1999) e Caminho das Águas (2001).
Natércia foi uma mulher-escritora urbana, apaixonada pelo sertanejo e pelo sertão. Talvez para dar vazão a esse sentimento, criou o romance A Casa, Prêmio Osmundo Pontes. Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa que aborda desde seu nascimento até sua morte, debaixo das águas. A um só tempo, A Casa assume a condição de espaço, narradora e personagem, que fala de si e das relações familiares dos moradores que a habitam.
Ela foi construída “com esmero” com material de qualidade: “carnaúba, “troncos do jucá, da ibiraúma, da braúma”. Tais materiais permitiram que tal morada, batizada de Trindades, pudesse sobreviver a estiagem, a hordas de urubus e, até mesmo, o descaso de alguns de seus residentes.
É a própria Casa, na condição de narradora e de espaço, que conta para o leitor, os conflitos familiares que viu e ouviu por quase cinco gerações. As mulheres desse solar são marcadas por angústias tanto pelo que vivera, como por aquilo que deixaram de viver, como é o caso de uma das primeiras moradoras de A Casa, Tia Alma. Como sua mãe não conseguiu chegar ao Brasil, foi Tia Alma, a responsável por criar os sobrinhos, tarefa desempenha de bom grado. O grande conflito da personagem foi o fato de não ter se casado, já que o enlace matrimonial, nos séculos XIX e XX, representava o destino “natural” para a mulher.
O segundo grande conflito que chega ao conhecimento do leitor, diz respeito ao personagem Bisneto (invertido), cuja sexualidade, não era aceita pela família, motivo pelo qual sofreu violência física e foi afastado do convívio dos seus para morar com o avô na Casa da Serra. Infelizmente, o Brasil não é um país aberto as manifestações de diversidade sexual, já que é um dos que mais matam a população LGBTQIAPN+.
O terceiro conflito presenciado pela Casa é o do personagem Custódio, filho de um parto difícil, que quase resultou na morte de sua mãe. Foi um nascimento marcado por tanta dor, que ela amaldiçoou aquela criança e, por mais que não quisesse, acabou por rejeitá-lo. Ele se tornou um menino introspectivo, cujo amor por sua genitora, o fez tentar agarrá-la e beijá-la. Tal como Édipo criado por Sófocles, Custódio criado por Natércia, enxerga a mãe como mulher, e é o responsável por causar dor e sofrimento aqueles que estão à sua volta.
Primeiro, Custódio vai morar em um quarto fora das dependências de A Casa. O fato dos outros irmãos não questionarem, denota a falta de diálogo entre eles. Depois, ele vai morar na Casa da Serra dos Ventos, para onde fora expulso o Bisneto, dada a sua condição invertida. Foi lá que conheceu Eugênia e com ela se casou. Passaram a residir nas Trindades e tiveram quatro filhos: um menino e três meninas. Abusou das três. Mais uma vez pouquíssimas pessoas ficaram sabendo do ocorrido.
O quarto conflito diz respeito diz respeito à Maria, que tanto gostava de cuidar de A Casa, talvez como forma de suprir a carência de não ter um filho. Quando achou que estava grávida sua vida se transformou, mas logo se deu conta que a gravidez não passava de fruto de sua imaginação. Não sabendo lidar com tal situação, preferiu à morte a ter que enfrentar a tristeza do marido e o falatório das outras mulheres, especialmente de Emerenciana, mulher de gênio forte e egoísta, que usava seu tempo e sua posição social para ferir aqueles que estavam à sua volta.
As relações familiares vivenciadas pelos moradores de A Casa não foram fáceis, tampouco saudáveis. Marcadas pelo preconceito, violência e silenciamento, cada personagem, a seu modo, procurou sobreviver ante aos acontecimentos de dor e de angústia. No final de tudo, restaram as lembranças da Casa de todos os eventos que ela presenciou e a certeza que seu fim se aproximava com a construção de uma barragem.
Sobre a autora:

Luciana Bessa
*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler