Luciana Bessa*
As três Marias, Prêmio da Sociedade Felipe de Oliveira, publicado pela primeira vez em 1939, da escritora cearense Rachel de Queiroz, apresenta-nos três mulheres com seus sonhos, suas dores, suas dúvidas e seus medos de ser e de existir: Maria da Glória, Maria José e Maria Augusta, quem nos conta a narrativa.
Segundo a própria autora, As três Marias é a sua obra mais autobiográfica, motivo pela qual ela sentiu dificuldade em dissociar realidade e ficção. A semelhança entre Maria Augusta e Rachel de Queiroz são patentes: ambas são cearenses, estudaram em escolas religiosas e se afastaram de tais ensinamentos.
As três Marias, batizadas pela Irmã Germana, lembra-nos as três Marias Bíblicas, as três estrelas do Céu. O apelido pegou, foi tatuado na própria pele, elas ficaram orgulhosas dele. Sentiam-se “isoladas numa tríade celeste, aristocrática, no meio da plebe das outras”. Ao olhar para o céu, as meninas se reconhecem na constelação que têm o mesmo nome, por isso não se “importavam com os muros” alto da escola. “Nós tínhamos as nossas estrelas”. O sentimento de amizade as fortalecia.
A narradora, Guta, expande seus horizontes e olha para outras mulheres: Hosana, “loura, doentia e franzina”, capaz de bordar coisas lindíssimas; as Irmãs, “tão distantes, tão diferentes!”; Dona Júlia, mãe de Maria José, “sempre de mau humor, se queixando do marido longe(…)”; a mãe da Maria Augusta, falecida quando a filha completou sete anos. Uma “moça barulhenta e infantil que tomava banho de chuva”. Sua alegria contagiava o ambiente. A madrasta da Maria Augusta, “(…) tudo nela era formal, correto, virtuoso”. Há, ainda, Hortência, Maria do Carmo Silva, Maria Estela Pontes, Violeta, Josefina, Angélica Luísa Lima, Luísa Correia, Celeste, Teresa Pinheiro, a fujona da escola, cujo namorado, um “rapazola tão jovem quanto ela, preso também pela família num internato”. Um casal à lá Julieta e Romeu. Havia também Jandira, morena de olhos violentos, rosto largo e alma audaciosa…”, estudiosa demais, “amando as boas notas”, (…) “filha adulterina. Pai casado e mãe da vida, mestiça e humilde”. Vivia com as tias, irmãs do pai – “três velhas solteironas das quais só uma a estimava…” Cada uma delas, uma história.
A obra pode ser dividida em dois momentos: no primeiro, é retratado a infância dessas três amigas, cuja essência é a solidão e os desafios num ambiente escolar austero com “classes vazias, mudas, fechadas”, em que o único ruído era “o terço da cintura da Irmã (…)”. No segundo, saída da escola religiosa, para os embates da vida adulta: Maria da Glória, casa-se e torna-se mãe. Maria José abraça o magistério e vai morar com a mãe e os irmãos. É a única do trio que permanece com a fé arraigada. Maria Augusta tem desejos e anseios diferentes das amigas, apesar da formação conservadora e castradora da qual é fruto. Sua busca é por desbravar o mundo, romper fronteiras.
Logo, ao sair da escola, não consegue se adaptar à casa paterna. Consegue um emprego como datilografa em uma repartição pública em Fortaleza e passa a morar com a família de Maria José. Finalmente, a tal felicidade parece ter sido encontrada. “Viver sozinha, viver de mim, viver por mim, livrar-me da família, livrar-me das raízes, ser só, ser livre”. Minha identificação com Maria Augusta foi instantânea.
Envolve-se com um pintor que fazia uso de drogas, homem casado e bem mais velho do que ela, Raul. Guta reclama de não ser entendida por suas escolhas: “E ninguém me entendia, admiravam-se que depois de anos de reclusão e disciplina, eu aspirasse à liberdade e os prazeres proibidos”. Raul apresenta-lhe Aluísio. Tornam-se amigos, mas o rapaz nutre amor por ela. Depois de beber com os amigos, Aluísio comete suicídio. Guta é “acusada” da morte dele e sente-se indignada por isso.
Nesse ambiente de dor e revolta ante aos últimos acontecimentos, ela vai passar uma temporada no Rio de Janeiro. Lá conhece “o dr. Isaac, um rumaico de cabelo vermelho e grandes mãos brancas, voz lenta e grave, dum sotaque pitoresco e arcaico, que lembrava a fala de línguas mortas”. Apaixona-se. Tem sua primeira noite de amor. No entanto, não se sente realizada. Pelo contrário: esperava mais dele: atenção, carinho, prazer-mútuo.
E como o amor, parece-me que precisa das pedras no meio do caminho para existir, Maria Augusta é chamada ao seu emprego no Ceará. “Se ele me pedisse que ficasse, eu lhe obedeceria decerto, coisa sua que eu era. Mas ele próprio é que nem encarava a possibilidade de me ver ficar e aludia a isso como um sonho impossível”. Pergunto-me: 1) Por que ele não pediu para Guta ficar? 2) Por que Guta não expressou o desejo de ficar? O que sabemos é que ela retornou à terra natal: triste e preocupada com uma possível gravidez, que acabou se confirmando. Ela aborta a criança e decide voltar para o seio da família da qual sempre procurou ficar longe.
Das três Marias, a Glória e a José encontraram seu caminho: maternidade e devoção. Augusta encontrou prazer, amor, amigos, assim como, a desilusão e melancolia. Imobilizada pelo sentimento de infelicidade desistiu de pelear com a sociedade, voltou-se para si mesma “(…) brilhando na escuridão”, até que sua luz se apagasse.
Sobre a autora:
Luciana Bessa
*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler