Astrologia, Literatura e Autoria Feminina

Émerson Cardoso

A astrologia faz parte de nosso cotidiano. Talvez ela nos seja interessante porque, como sujeitos conscientes da finitude, somos motivados pelo desejo de nos irmanar com o cosmos que nos chega de algum modo por meio da astrologia com sua dança misteriosa de astros. Ela apresenta doze signos zodiacais, doze universos a serem desvendados e doze caminhos possíveis de autoconhecimento.

O Nordestinados a Ler propõe, como um espaço lúdico de reflexão, doze textos que nos darão a oportunidade de conhecer figuras femininas da nossa literatura que representam cada um dos doze signos. Queremos, com isso, refletir sobre essas escritoras e instigar, principalmente, à leitura de suas obras.

Vamos conferir a primeira delas?

Do signo de Aries e seus impulsos: Lygia Fagundes Telles

Quando não era hábito que as mulheres estudassem na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, ela estudou. Quando a sociedade brasileira olhava com preconceito para uma mulher que ousava passar por um processo de separação, ela separou-se do primeiro marido. Quando as mulheres começavam a despontar no cânone literário brasileiro (embora nunca tivessem deixado de produzir obras incríveis), ela publicou um romance dos mais significativos de nossa literatura e tornou-se canônica. Quando ainda era restrita a entrada de mulheres na Academia Brasileira de Letras, ela entrou. Ousada, intensa e pautada no que há de loucura e de beleza na arte da palavra, Lygia Fagundes Telles veio ao mundo sob o signo de Áries.

Áries, o primeiro signo zodiacal, é o carneiro de pelos dourados que, na mitologia grega, foi dado a Nefele para transportar seus filhos Hele e Frixo. Nefele foi a primeira esposa de Atamante e foi vítima de um plano cruel de Ino (segunda esposa de Atamante e filha da deusa Harmonia com Cadmo), que a forçou a fugir para as terras do rei Eetes. Hele caiu do carneiro e faleceu (criando o Helesponto), mas Frixo conseguiu chegar ao reino de Cólquida e sacrificou o carneiro a Zeus, que o transformou na constelação de Áries.

Impulsivo, corajoso e cheio de vitalidade, Áries representa o primeiro signo zodiacal, o início da jornada e a força maior para agir no mundo. Seu planeta regente é Marte e o fogo é seu elemento por excelência. Por isso, os desse signo são entusiasmados, independentes e corajosos.

Quem nasce entre 21 de março e 20 de abril é do signo de Áries. Lygia Fagundes Telles nasceu em 19 de abril, isto é, no último decanato do signo. Nesse caso, com intensa energia mental e forte senso de justiça, por ser regida por Júpiter, ela direcionou seu olhar independente e expansivo para os estudos, as artes e a fabulação.

Sempre corajosa, quando encontrou um novo amor, após a separação sem divórcio, Lygia Fagundes Telles foi viver com ele a despeito do escândalo que isso representou para a época. Fez duas graduações. Conheceu e conviveu com figuras significativas das artes no país de igual para igual. Trabalhou e viajou muito. Criou roteiro cinematográfico. Escreveu contos, crônicas e romances. Recebeu prêmios e comendas. Manifestou-se contra a ditadura. Foi indicada, aos 92, ao Nobel de Literatura. Não descansou em sua vida movimentada e longeva.

Capaz de observar com profundidade a alma humana, a autora mergulhou intensamente na condição da mulher, sobretudo por meio das personagens femininas que construiu desde Ciranda de Pedra (1954), seu romance de estreia, passando por Verão no Aquário (1964), As Meninas (1973) e As Horas Nuas (1989). As protagonistas desses romances são vivazes e complexas por serem inseridas em contextos sociais nos quais ser mulher pressupõe estabelecer lutas para existir, expressar desejos e construir caminhos apesar dos cerceamentos.

Para entrar nas obras dessa ariana que se aprofunda na observação da condição humana em suas múltiplas possibilidades, recomendo a leitura dos romances mencionados e apresento três heroínas dos contos que mais amo da autora: 1) A confissão de Leontina, 2) Pomba enamorada ou uma história de amor e 3) Venha ver o pôr do sol.  

A confissão de Leontina evoca uma personagem feminina cuja existência é atravessada por acontecimentos dolorosos que a conduzem à prisão. Ingênua e vítima das circunstâncias, Leontina é acusada de assassinar um homem, mas impedem-na de defender-se. Ela, em verdade, agiu em legítima defesa, no entanto quem lhe garantiria um espaço de escuta? Quem acreditaria em sua versão da história? Esse conto desperta em quem o lê emoções intensas, porque nos fazer doer como participantes diretos da dor vivida por essa heroína solitária e submetida ao cárcere.  

Pomba enamorada ou uma história de amor, que alude à astrologia em vários momentos (quando apresenta o signo da protagonista, Capricórnio, e de seu amado Antenor, Touro), trata da temática amorosa a partir da busca irrefreada da heroína do conto para viver um relacionamento com um homem por quem está apaixonada, mas que a pretere. Ela ignora o preterimento de Antenor e cria as mais absurdas (e tragicômicas) tentativas de aproximar-se dele. Agir no mundo em busca do que acredita ser o sentido da vida é a sua marca por excelência.

Venha ver o pôr do sol traz a personagem feminina Raquel. Ela se torna vítima de Ricardo, o ex-amante que cria um plano de vingança por ela ter rompido o relacionamento com ele e, na ocasião, estar envolvida com um homem rico. Raquel vai ao encontro proposto por Ricardo, em um cemitério abandonado, por ser uma mulher ousada e livre. O cemitério abandonado, para um último encontro às escondidas, até lhe parece romântico. Embora vivaz e experiente, não ocorre a Raquel que seu ex-amante, manipulador e vingativo, seria capaz de submetê-la a um terrível plano de vingança. Entre deboches, ironias e preterimentos, Raquel deixa seu ex-amante indignado. Ele, incapaz de aceitar o preterimento, opta por puni-la. Estamos no campo das reflexões sobre: relacionamento abusivo, vingança, preterimento amoroso e feminicídio, dentre outros pontos que podem ser inferidos nas camadas profundas do texto.

Lygia Fagundes Telles, por essas e tantas outras narrativas de valor literário inestimável, é das mais proeminentes figuras da Literatura de Língua Portuguesa. Conhecer sua obra é mergulhar no que há de mais envolvente e lírico da arte da palavra. Conclamo, portanto, quem ama a Literatura no que há de mais profundo e belo a conhecer a riqueza que a obra literária dessa autora grandiosa apresenta.

Para concluir, gostaria de compartilhar dois textos do livro A disciplina do amor (1980). O primeiro texto, tem por título: Signo de Áries. Nele, a autora escreve: “Você está sempre indo de um lado para outro, você não para, mas afinal, do que você está fugindo?”, perguntou Hilda Hilst. Riu. “Seja o que for essa coisa da qual você está fugindo, acho que ela não vai te alcançar nunca”.

O segundo, é uma frase retirada do texto Da vocação. Essa frase me povoa desde que a li, sobretudo me vem à mente quando a vida tende a doer, e parece algo que uma pessoa do signo de Áries diria: “Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas”. Com essa frase que nos impele a enfrentamentos e a rebeldias diante dos conflitos da vida, podemos dimensionar a força da palavra dessa ariana que muito nos honra com sua existência e sua arte.

Salve Lygia Fagundes Telles!

REFERÊNCIAS:

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

TELLES, Lygia Fagundes. Da vocação. In: A disciplina do amor: memória e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

________. Pomba enamorada ou uma história de amor. In: Meus contos preferidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

________. Os melhores contos de Lygia Fagundes Telles. 6. ed. São Paulo: Global, 1988.

sobre o autor:

Émerson é de Juazeiro do Norte/CE. Pesquisador, professor e escritor. São de sua autoria: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011)os cordéis A Beata Luzia vai à guerra (2011) e A artesã do chapéu ou pequena biografia de Dona Maria Raquel (2012); A Revolta de Antonina (2015), A dança das contundências (2017), O Casarão sem Janelas (2018) e  O baile das assimetrias (2021).