Shirley Pinheiro
“não, não estou desesperada , não mais do que sempre estive, nothing special, baby, não estou louca, nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída”. (Os Sobreviventes, 1982)
Não faz muito tempo, desde que me deparei com a escrita de Caio Fernando Abreu. Foi numa dessas madrugadas recorrentes, em que o sono deu lugar à melancolia e que nem uma música ou leitura parecia capaz ou suficiente para me tirar daquele estado de desinteresse. Mas como a poesia não desiste de mim, quando abri o Spotify, para tocar uma playlist qualquer, um podcast chamado poesia ao pé do ouvido se anunciou na tela do meu telefone. E, como quem não quer nada, abri aquele perfil e fui me deixando envolver pela interpretação da narradora, que, a cada episódio, lia trechos de poemas, livros e músicas. De Larissa Campos, Clarice Lispector, Belchior, Caio Fernando Abreu, dentre outros.
E foi assim que conheci Os Sobreviventes, aquele que viria a ser meu conto favorito da vida, lido tantas vezes, que se minha memória fosse minimamente colaborativa, eu já o teria decorado. Mas naquele momento eu ainda não sabia que aquelas palavras que eu ouvia eram um trecho de um conto. Não,eu achava que era um poema, e estava disposta a copiá-lo no caderno onde anoto minhas poesias favoritas. E foi naquela madrugada, de pequenas e grandes esperanças, que me encontrei nas palavras de Caio Fernando Abreu, pois, ao descobrir que Os Sobreviventes era, na verdade um conto, descobri, também, outros escritos do autor e, maravilhada, me vi refletida nas palavras de um homem que morreu antes mesmo de eu nascer.
Mas além de sua obra, também fiquei encantada pela trajetória vivida por Caio. Afinal, como não se encantar com a vida de um autor, que, embora breve, foi dedicada à liberdade?
Caio Fernando Abreu nasceu em 12 de setembro de 1948, em Santiago, uma cidade do Rio Grande do Sul, tão pequena, que quando Caio, aos vinte anos, se mudou para a capital de São Paulo, o choque que enfrentou ao chegar a metrópole foi apelidado por ele mesmo de “o choque do Jeca”. Nessa época, ele já tinha o seu primeiro conto — O Príncipe Sapo (1963) — publicado pela revista Cláudia. E sua vinda para São Paulo, foi para trabalhar na redação da revista Veja.
Num compilado de entrevistas, organizado pela Rede RBS do Rio Grande do Sul, para o programete Escritores Gaúchos, Caio Fernando Abreu, que fez, da sua obra, um retrato de sua geração, reflete sobre a própria trajetória — “eu fiz questão, na minha vida, de correr absolutamente todos os riscos. Fiz tudo o que minha geração fez, eu fiz radicalmente até o fim. Eu fui garçom, eu fui preso, eu fui hippie“; da sua função como escritor — “a literatura é boa quando alguma coisa dela se aplica à vida do autor, para torná-la, de alguma forma, melhor “. Sempre consciente de seu papel como porta-voz dos anseios sociais de sua época — “quando uma personagem minha não tem nome, é porque ela é muita gente“.
Caio F., como costumava assinar, é fruto de uma geração atormentada pela repressão ditatorial, que lutou pelos próprios direitos, pela própria liberdade e, como tal, sofreu com as marcas desse tempo. Caio, que embora fosse uma pessoa alegre e extrovertida, passava por longos períodos depressivos e isolamento. E tudo virava literatura:
Os dias em que nada parecia acontecer e não estávamos dentro dos tais anos 70: por trás de circunstâncias históricas, nomes e datas, estávamos dentro de um tempo que ainda não ganhara uma forma exata. Se foram duros? Foram, foram duros. Mas foram também cheios de sonhos e encontros e pequenas e grandes esperanças. Foram anos em que não se podia viver muito para fora: a repressão política nos empurrava para dentro. Nesse movimento, havia duas opções principais e radicais: ou você caía de cabeça nas drogas ou mergulhava na clandestinidade política. O que ligava os dois comportamentos era uma vontade poderosa de mudar o país e o planeta, fosse através do ácido lisérgico nas caixas-d’água das cidades, fosse pela revolução do proletariado. […] Justamente por isso, enfrentar de peito aberto todos os riscos de dentro ou de fora da própria cabeça, esgueirando-se entre paranoias quase sempre reais. Não tínhamos ainda essas marcas deixadas pelos que desistiram, se mataram, foram presos, torturados, assassinados, enlouqueceram — enquanto dentro de nós pequenas partes iam também desistindo, se matando, sendo presas, torturadas, assassinadas, enlouquecendo. (Pequenas e Grande Esperanças, 1984)
Abertamente “assumido” como bissexual e defensor da liberdade sexual e dos corpos, Caio F. foi perseguido pelos militares, durante o governo ditatorial. O autor, que abordava frequentemente temas relacionados à homossexualidade em suas obras, foi visto como uma ameaça pelos conservadores que perseguiam membros da comunidade LGBTQIAP+ e defendiam o modelo patriarcal de família. Com a instalação do Ato Inconstitucional nº 5, Caio viu muitos de seus textos censurados. Em 1968, mesmo ano em que o AI-5 entrou em vigência, o autor foi fichado pelo DOPS e acabou sendo obrigado a se refugiar em Campinas, onde foi acolhido pela escritora Hilda Hilst, em sua Casa do Sol, onde ficou até 1971 e onde produziu boa parte dos textos de sua primeira coletânea de contos, O Inventário do Irremediável (1970). Em uma carta para Hilst, Caio deixa claro sua insatisfação e repulsa diante do cenário político que o país enfrentava:
As coisas realmente não andam boas. Parece que quando tudo começa a degringolar, não há o que segure. Primeiro no plano político: a portaria do ministério sobre censura de livros me deixou besta. Não pensei que chegássemos a tanto, é a degradação completa, o medievalismo e a inquisição reinstaurados. […] Porto Alegre sempre foi uma cidade nazista, cheia de grupos de defesa familiar e coisas do gênero: tudo isso repercute aqui da maneira mais alvissareira (do ponto de vista deles) possível. Os lugares onde eu costumo ir, bares onde se reúne gente de teatro e outros desgraçados, estão cheios de espiões — não se tem a menor segurança para falar sobre qualquer assunto menos “familiar”. […] Quanto ao livro, não soube nada. Creio que vou ter mesmo que pagar a edição — mas me revolta a ideia de ter que submeter os originais à censura, obviamente grossa e sem condições para julgar sequer J.G. de Araújo Jorge. (Abreu, 1948-1996)
Conhecido como o arauto dos excluídos e realmente comprometido a dar voz à sua geração, principalmente pela perspectiva dos oprimidos, Caio Fernando Abreu foi um dos primeiros escritores brasileiros a abordar a AIDS em sua obra, numa época em que a doença ainda não era falada, antes mesmo de ser diagnosticado com ela. A AIDS chegou ao Brasil no final do século XX, uma doença para a qual não se conhecia a causa nem a cura e que se mostrava devastadora no organismo afetado. Foi inicialmente identificada como síndrome que acomete indivíduos do sexo masculino e homossexuais, por essa razão, foi negligenciada e, por um bom tempo nem sequer foi dada devida importância, pelo contrário, foi mais uma fonte de preconceito e marginalização de homossexuais e travestis, para muitos, era um “castigo de Deus”, porque “bixa merece morrer”. Numa tentativa de dar dignidade aos doentes e de deixar um testemunho do corpo adoecido, Caio Fernando escreveu Cartas para além dos muros, onde ele tratava abertamente da doença que lhe acometeu.
Caio morreu em 25 de fevereiro de 1996, por complicações decorrentes do vírus HIV, coincidentemente, na mesma semana em que foi anunciado um tratamento com coquetéis retrovirais, no mundo todo. No Brasil, os medicamentos eram distribuídos gratuitamente aos portadores de HIV.
Quase três décadas depois de sua morte, a obra de Caio Fernando Abreu se mantém extremamente atual, não é atoa que a internet e redes sociais estejam inundadas de frases e citações do “popstar da literatura”.
REFERÊNCIAS:
ABREU, Caio Fernando. Caio Fernando Abreu: O essencial da década de 1970. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
______. O melhor de Caio Fernando Abreu. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
Márcio Dias. Programa Escritores Gaúchos — Caio Fernando Abreu (Série da RBS TV). YouTube, 3 de fevereiro de 2012. Disponível em: https://youtu.be/ZxHEtVh1sik?si=ESwTOafUywqO2YBV. Acesso em: 11 de set 2023.