Caminhos de pedra

Caminhos de pedra, publicado pela primeira vez no ano de 1937, é a obra com teor mais explicitamente político da primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (1977) e a primeira a receber o Prêmio Camões (1994) – Rachel de Queiroz.

Terceira obra queirosiana, trata-se de uma metáfora para mostrar o longo percurso preconceituoso e desafiador de uma mulher, Noemi, que não se conforma com sua vida enclausurada no ambiente doméstico para cuidar do marido e do filho. Ela rompe com o papel feminino tradicional imposto às mulheres do século XX.

Indicado para um dos vestibulares mais difíceis do país, FUVEST (2026/2027), a obra tem suscitado debates sobre questões feministas, já que Noemi luta por sua autonomia afetiva, política e econômica. Interessante é o fato de que a autora, Rachel de Queiroz, sempre se declarou antifeminista.  

Além disso, o livro levanta questões sobre as escolhas políticas da mulher Rachel de Queiroz. Sendo o sujeito um animal político, o flerte entre Literatura e Política sempre foi uma constante. Dificilmente encontramos um escritor/uma escritora indiferente às questões de seu tempo.

É importante salientar o período de publicação da obra: 1937. Neste mesmo ano, Rachel de Queiroz foi presa durante três meses, acusada de envolvimento com o Partido Comunista. Inclusive, parte de Caminhos de pedra foi escrito na prisão. A literatura, para além de entretenimento, é uma ferramenta de denúncia das mazelas sociais, como de resistência.

A década de 30 representou um caldeirão ideológico de guerras, ditaduras (Era Vargas) e disputas políticas. Literariamente falando, é o período da 2ª Geração do Modernismo.  Mais do que um movimento literário, tratou-se de uma época de grande amplitude para reavaliação da cultura brasileira. O fator político é uma das bases fundantes do Modernismo.

Nos quatro primeiros capítulos de Caminhos de pedra, conhecemos o jornalista Roberto, recém-chegado do Rio de Janeiro em Fortaleza, encarregado de organizar uma célula política de esquerda na região para lutar pelos direitos dos trabalhadores.

Sua chegada é marcada por um sentimento de frustração: Roberto é recebido por desconfiança pelos operários, que enxergam nele um pequeno burguês, em virtude de saber ler, escrever e ser jornalista. Os operários defendiam que eram eles mesmos quem deveriam se organizar politicamente e “não um elemento estranho à classe”.  E se o trabalhador não sabe ler, a culpa não é dele, afinal ele “vive debaixo do chicote burguês, trabalhando!”. As divergências entre “tamancos” (operários) e “gravatas” (burgueses) evidenciam as animosidades reais e internas que enfraqueceram e continuam enfraquecendo os movimentos de esquerda do país.

Quando o leitor menos espera, no quinto capítulo, Noemi chega e toma para si o coração do Roberto e o protagonismo da obra. Detalhe: ela é casada com João Jaques, um homem bonito, inteligente, mas desiludido com as lutas políticas. Mãe de Guri e funcionária de Seu Benevides, Noemi trabalha oito horas por dia em um Fotografia em que precisa “tirar os pés-de-galinha” em redor dos olhos das clientes. É praticamente o photoshop da década de 1930. Diferentemente das imagens que podem ser alteradas, Noemi sente dificuldade e culpa por querer mudar sua vida “besta” ao lado do marido e do filho.

Depois de idas e vindas, ela finalmente consegue se separar de João Jaques e assumir seu amor por Roberto. Nesse momento, o caminho das perdas se abre para a protagonista: “Muito se comentou na rodinha da praça… Em geral condenavam  Noemi… Na fotografia a coisa também mudou. Guiomar arranjava pretextos para não saírem mais juntas”. A (ex) amiga procurava “as mudanças” em Noemi, mas nada mudara: “nem o cabelo, nem o vestido, nem o andar”. Guiomar sentia-se fraudada com aquele comportamento. “Como é então que a gente vai conhecer uma mulher honesta?”. Guiomar, como muitas mulheres de nosso século, ainda precisam compreender o significado do termo honestidade: honradez, retidão, sinceridade. Não foi esse o comportamento de Noemi consigo e com o pai de seu filho?

“A Roberto, ninguém se atrevia a falar”. À Noemi, todos se atreviam a apedrejar. Ela perdeu o emprego. Mudam-se os tempos, mas a hipocrisia social parece ser a mesma! Seu Benevides explicou-lhe que a “Fotografia era frequentada por famílias”. Muitas já tinham reclamado do comportamento dela “nestes últimos tempos”. Quando novamente o leitor, pelo menos eu, deseja que o caminho de pedras de Noemi se torne um caminho de flores, ela perde o filho, por mais que esbracejasse: “- Não morre! Meu filho não morre”.

Por fim, vemos a protagonista numa situação de penúria, “se sentindo sozinha e abandonada, sem dinheiro, sem emprego”, e grávida. A tragicidade da vida política da década de 30 é a mesma da vida das personagens.

Com um estilo fluído e conciso, com diálogos objetivos, claros e vividos, Caminhos de Pedra é uma obra dinâmica e enxuta, que retrata as adversidades políticas de um país desigual, em especial àquelas enfrentadas pelas mulheres para conseguirem ser donas de seus corpos, suas ideias, seu prazer sexual.

Sobre a autora:

*Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler (nordestinadosaler.com.br)