Literatura

Grávido aos 47
Literatura, Sem categoria

Grávido aos 47

Acordei grávido aos 47 anos. A lua estava cheia e os lençóis, suados. Tomei duas garrafas de água e meus olhos pareciam sambar. Engravidar aos 47 é como chegar aos 18 — não sei bem a relação desta analogia, mas acredito que faça algum sentido. Aos 18, a responsabilidade aumenta e o mundo parece ser outro. Aos 47 anos, ainda se tem muita coisa para fazer. Meus avós se foram perto dos noventa. Morreram um pertinho do outro, tanto os maternos quanto os paternos. Não sei se chego até lá. Não penso em pular da varanda, tento me alimentar bem e, por incrível que pareça, frequento a academia — mas não tiro foto. O destino é imprevisível. Não estava nos planos engravidar aos 47. Mas aos 47 engravidei, e amanhã o mundo pode acabar. Enquanto ele não acaba, cuido da gravidez. Talvez sejam gêmeo...
Quebra-queixo, caldo de cana e ipê
Literatura

Quebra-queixo, caldo de cana e ipê

Atreparam-se para colher sementes de ipê-rosa. Suas vagens caíram, as sementes se espalharam, cataram uma por uma. Os ipês são árvores de encanto: os rosas guardam uma beleza calma, já os amarelos parecem que estão com os dentes para fora sem parar de rir. Sementes de ipê guardadas em sacos de papel, prontas para o plantio. Plantar e colher exige delicadeza e dedicação. Teve naquele dia ipês no meio do caminho. Nem só de pedras se compõem as estradas. Quebra-queixo, caldo de cana, sol para cada um, beijos sem quatro paredes e olhos de margarina na quentura do meio-dia pareciam afagos com algodão e nuvens. Atrepados na ponta da língua e dos sonhos, o ipê floresce. Poderia falar de todas as pedras do caminho e do desespero do poeta, mas contenho-me por um instante no quebra-queixo, ...
Do signo de escorpião e suas intensidades não resguardadas: Cecília Meireles
Literatura

Do signo de escorpião e suas intensidades não resguardadas: Cecília Meireles

Poeta, professora, pedagoga e jornalista, Cecília Meireles construiu um legado dos mais expressivos de nossa Literatura Brasileira. Criadora de imagens poéticas ricas em simbologias, a profundidade de sua obra lhe possibilitou entrar no cânone literário que, no contexto de sua atuação, era um espaço que excluía, invariavelmente, a produção literária de mulheres. Sob o Signo de Escorpião, este signo de intensidades não resguardadas, Cecília Meireles nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 07 de novembro de 1901. Embora tenha se dedicado à narrativa e a textos ensaísticos, ela se notabilizou pela produção da poesia. Sobre seu nascimento, Cecília Meireles (1982, p. 03) afirma: Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos...
A florzinha de acerola
Literatura

A florzinha de acerola

Manhã, café para fazer. O Chupa-Manga visitava a varanda; pequenino, se escondia entre as folhas. A poeta das plantas colhia acerolas. Chegou orgulhosa da sua colheita: maduras, doces e vermelhas brilhantes. Foi logo fotografar, experimentou composições e provou cada fruto delicadamente. Café da manhã pronto. Há dias atípicos, em que o relógio é esquecido, porque o único compromisso está posto à mesa e no desejo de celebrar a delicadeza. Melancia, morango, suco de acerola, uvas, café, cuscuz, ovos e queijo. Do lado esquerdo estava a poeta das plantas, comendo e dividindo conversas. Lembrava que uma hora demorou quase um dia; promessa difícil é passar pouco tempo. A gente não faz contabilidade das horas, quando vai ver: já é outro dia. Antes do meio-dia, a poeta das flores oferta uma ...
Carlos Drummond de Andrade: um escritor leitor
Literatura

Carlos Drummond de Andrade: um escritor leitor

A leitura é uma ferramenta de aprendizado, transformação e subversão. Não se sai incólume, quando se ler. Para além do conhecimento do (s) outro (s), a leitura gera um conhecimento de si. Sua natureza é ampla, diversa e significativa. A leitura pode ser entendida tanto como um momento de meditação, como de apropriação do mundo interior/exterior. Ler é uma prática pessoal e intransferível. O leitor, a convite do escritor, é um desafiador do universo das insubmissas palavras e o único responsável por suas próprias leituras. Para ser escritor é imprescindível ser, antes de tudo, um leitor. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), além de contista, cronista, ensaísta, crítico literário e poeta, foi antes de tudo, um leitor/escritor sensível e arguto de seu tempo. O menino Carlito desde a ...
Agricultores de Estrelas
Literatura

Agricultores de Estrelas

Vontade de pichar os céus só para dizer o quanto sinto. Nossos manifestos de amor são escritos sobre os olhos, arados na terra, debaixo dos lençóis, pelas manhãs com café e cafuné, na simplicidade de lavar a louça, na rega das plantas, na oferta da batata doce, na pimenta e no chocolate. Falta respiração; a velocidade dos acontecimentos nos faz dançar. São versos costurados no mistério e no segredo. Cabe o céu e a terra no poema sonhar. Hoje fiquei na dúvida, na verdade sem respostas. Não sabia direito o que escrever ou oferecer. Teria um trabalho imenso para enumerar a intensidade, as trocas, o sorriso fácil, os olhos brilhantes, a comida dividida entre o verde e a varanda. O sanhaço  se equilibrando no fio, bicando banana logo cedo. Não saberia por onde começar, se por um ch...
A saudade é uma porta aberta
Literatura

A saudade é uma porta aberta

Dezoito chaves. Manhã, segunda-feira. O ipê do jardim acena com suas flores amarelas para um dia nublado. Faz calor. Garoa. As dezoito chaves abrem cadeados e portas, nenhuma abre caminhos. O sol começa a dar as caras, mas logo as esconde. Tomo suco de caju enquanto brinco com as dezoito chaves. Conto até dez para tentar escutar a respiração: ela está fazendo caminhada e ouvindo música clássica. Os dias estão com gosto de primavera, e as borboletas têm aparecido na varanda. Tenho plantado algumas estrelas e carregado no bolso as chaves. Outro dia, ganhei uma música fazendo cafuné e um par de olhos brilhando como purpurina. Guardei na geladeira um bolo de pote para comer quando puder. Escrevi um poema parcelado em dez vezes para que as surpresas possam ser diárias. A saudade está d...
Do signo de libra e suas reverberações estéticas:
Literatura

Do signo de libra e suas reverberações estéticas:

Júlia Lopes de Almeida Na Literatura Brasileira há um nome que não pode ser esquecido: Júlia Lopes de Almeida. Tentaram fazê-lo, porque o cânone literário nacional fechou-se, por muito tempo, à produção literária de mulheres. Ainda que esse processo tivesse pretensões de justificar exclusões por uma suposta ausência de apuro conteudístico-formal na obra dessas autoras, isso não poderia se aplicar, em absoluto, à obra de Júlia Lopes de Almeida. Nascida em 24 de setembro de 1862, no Rio de Janeiro, Júlia Lopes de Almeida produziu, dentre outros gêneros: poemas, peças teatrais, romances, contos e crônicas. Foi na produção de narrativas, porém, que a autora se notabilizou como uma das maiores do país. É estranho pensar que sua obra obteve reconhecimento no contexto em que ela atuou e, co...
                           Mudando o lugar de colocar perfume
Literatura

                           Mudando o lugar de colocar perfume

Alinhar os quadros: milímetros podem alterar o resultado. Revirou a casa. Espanou o coração. Mudou os móveis como quem planta rosas, com delicadeza e cuidado para não se machucar. Dançou no meio da sala enquanto olhava as paredes. Em cada canto, desenhou uma borboleta; em outros, deixou flores e cheiros. Bordou a casa com as mãos cheias de ternura, marcas de primaveras e invernos. As plantas respiram diferente. A casa passa por reformas. Aos poucos, a cumplicidade se aloja, e os sorrisos vão encontrando abrigo. A cama ganhou braços macios para acolher noites de sonhos e de frio. No jardim, a rosa amarela destaca sua presença. Tomo café. Faço algumas declarações de amor. Atesto que coisas saíram do lugar e que ando mudando até o lugar de colocar perfume. Sobre o autor: Al...
Debaixo do pé de manga tinha um sonho
Literatura

Debaixo do pé de manga tinha um sonho

Talvez Lili fosse seu apelido. Era madrugada de sábado. A menina de treze anos se sacudiu com os gritos. Já era tarde. O homem se mexia—talvez arrependido, talvez vingado, concretamente embrutecido. Seus olhos se perdiam no meio do sangue. Lili já não gritava. Não mexia nada. A menina de treze anos não sabia se gritava, não sabia se corria, não sabia de nada. A menina não teria mais Lili. "Lili está entre as estrelas olhando por nós." Mentira. Lili está costurada nos olhos e na cabeça da menina de treze anos. — Mãe, mãe, mãe... Lili já não escuta. Dizem que Lili foi vista debaixo de um pé de manga, entre beijos e abraços. Lili devia estar enxugando lágrimas, pegando vento, tentando respirar. Lili volta. Lili não volta. Sobre o autor: