Literatura

Não consegui me expressar como queria
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Não consegui me expressar como queria

Luciana Bessa Você já tentou falar tudo o que está preso na sua garganta e não conseguiu? Eu já... por uma dezena de vezes. Você já tentou dizer tudo o que pensa a respeito do outro, mas no meio da discussão, você começa a chorar e a voz falha? Eu já... por uma dezena de vezes. Você já tentou apresentar um trabalho, seja na universidade ou no seu ambiente de trabalho, e sua voz engasgou? Eu já... por uma dezena de vezes. Diante dessa realidade, pensei: é falta de conteúdo. Estudei por anos a fios, mas nada mudou. Então passei a me definir como uma pessoa tímida, já que me sentia inibida quando precisava me comunicar e interagir socialmente com o outro. Com o passar do tempo, fui compreendendo que não se tratava de ter pouco conhecimento sobre um dado assunto, ou o fato de se...
Ventania em liquidificador
Literatura

Ventania em liquidificador

Alexandre Lucas Deixou uma vela acesa na mão do poema. A noite apagou as estrelas e a lua. Pela madrugada foi à praça, observou a angústia dos bancos vazios, apenas o vento falava.   Abraçou-se no vento para dançar uma valsa. Beijou a poeira com a língua nos céus. Tentava preencher a praça cheia dos seus vazios.   Era madrugada, o vento se conjugava com o frio. A maçã mordida se apresentava no meio da praça, rebolava com o vento.   — Quem quer maçã mordida?   Perguntava a si esbarrando no vento. O poema queimou durante a madrugada. Soprou o cadáver das palavras e mesmo assim não se livrou da poesia.   Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho.
Açougue do Pinto
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Açougue do Pinto

Alexandre Lucas Pinto vende cerveja e tira-gosto de carne de mulher. Nunca o vi vendendo outra coisa. Tudo está à venda: o silêncio, o ar, a bagunça, o corpo, o amor. Na esquina da rua mais distante, também se vende mentira, Coca-Cola e um pedaço de felicidade. Às vezes, é possível comprar até um lote no céu. Entre mesas velhas de madeira e um jukebox desmantelado — aquele aparelho em que se escolhe música com fichas —, lá está Pinto, com um sorriso pela metade. As mulheres se espalham pelas mesas, bebem, conversam, ouvem histórias de solidão, piadas improvisadas, porradas de palavras e nada com nada. Marcam o prazer no relógio e anotam com rostos cansados refletidos no espelho quebrado, mais um dia. Neguinha, a carne mais nova de Pinto, já tem 40 anos. Chegou há dois dias. É n...
Pequenos detalhes
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Pequenos detalhes

Rodrigo França Sentado na calçada de casa, junto à parede, jogava conversa fora com um colega de trabalho. O sol já se punha, pintando o céu de Juazeiro do Norte com tons de laranja e roxo, e o assunto, como sempre, flutuava sem compromisso. De repente, ele me surpreendeu com uma pergunta: — Ontem li um livro e não entendi muito bem. Por que será? Fiquei em silêncio por um instante, o olhar perdido no movimento da rua. Lembrei-me de um professor da faculdade que costumava dizer que a vida, assim como a leitura, se revela nos detalhes. Ao invés de mergulhar numa discussão sobre técnicas de leitura, decidi por um caminho mais… pictórico. — Sabe, outro dia, fazendo o mesmo percurso de sempre para o trabalho, percebi uma casa de primeiro andar que nunca havia notado. Grades dourada...
Na casa da vó, tinha mais estátua de santo que arroz
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Na casa da vó, tinha mais estátua de santo que arroz

Alexandre Lucas — Alguém vai descer? Desceu o inesperado. Se viram, mas não se olharam. Nenhuma palavra foi trocada; o silêncio se fez morto — o contrário poderia ser o fim. Andar ficou arriscado: as ruas são as mesmas, mas os lugares mudaram. Quando sai de casa, se benze. Não toma só banho não, mas parece que só o banho faz efeito. Em toda saída, pede a bênção ao pai — que nunca abençoa menos que duas vezes. Antes era apenas uma; depois que foi ameaçado de morte, o pai reforçou a bênção. Pareciam oito anos, mas não passavam de nove meses. Na ditadura, os dias são mais longos, e nunca se está preparado para jogar o corpo na rua. Os olhos correm mais que as pernas, e o balançar das folhas pode ser uma grande carreira. Desceu a ladeira. Entrou na primeira porta, comendo interr...
Bodega e Trovões
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Bodega e Trovões

Alexandre Lucas Na bodega ao lado tem de tudo: farinha, prego, cimento, ração, fio, banana, carne, caderno, remédio. Abre todos os dias, inclusive nos feriados e dias santos. Dia santo no Brasil é data para quem é católico, mas todo mundo se dá bem.   Acordou com a bodega na cabeça. Carregava mais coisas que a bodega. Afinal, nasceu quase no final da ditadura, acumulou nesse tempo poeira, enlatados, canções de fúria, algumas luas e dores de cabeça.   A bodega ao lado fica imóvel, aguenta o entra e sai das pessoas. Nos domingos à tarde, fecha. Já ele não pode fechar, fica aberto mesmo. quando consegue dormir.   Ele não tem bodega; tem um tiroteio. A bodega parece pacata, apesar dos fiados e dos esquecidos.   O Brasil talvez seja uma bodega cheia ...
Noite quente e unhas roídas
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Noite quente e unhas roídas

Alexandre Lucas Os gatos na rua olham para a varanda. Toca Caetano. A baiana de Ilhéus manda entusiasmo e pergunta sobre as trincheiras de luta. O capitalismo distancia os abraços e o café. Os gatos comem coração de boi jogado da varanda. A baiana diz que as unhas cresceram e conseguiu pintá-las com "Noite Quente", um roxo intenso de uma marca de esmalte. Unhas pintadas são difíceis de roer. Neblina. Os gatos procuram abrigo sob as portas. A baiana comenta que Ilhéus está frio. Fala que há dias difíceis em que sente se esvaziar, mas afirma: "É preciso resistir". Lá fora, parece haver uma briga. É final de domingo: nos bares, homens e mulheres cantam em ritmos embriagados. Uma criança chora; outras correm atrás da bola. Quase todas gritam. O filho traz bolo de macaxeira para ...
Como anda sua saúde social?
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Como anda sua saúde social?

Luciana Bessa Fiquei sabendo por um desses vídeos do Instagram que trezentos e trinta (330) milhões de adultos passam semanas sem falar com seus familiares, ou mesmo os amigos. Embora eu seja uma pessoa que cultive a solitude – conexão comigo mesma – todos os dias eu falo com minha mãe e com minha melhor amiga Maria, que na verdade, se chama Vitória (moramos em cidades diferentes). Confesso: eu não fazia ideia que existiam pessoas ao redor do mundo que estavam fora do mundo das relações afetivas. Também não havia acompanhado o resultado de pesquisas que têm comprovado que estabelecer vínculos sociais é tão importante quanto manter o sono em dia, praticar exercícios físicos e ser adepto de uma boa alimentação. Fazendo uma rápida pesquisa, descobri que anualmente, em Austin-Texas...
Ela foi tomar água
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Ela foi tomar água

Alexandre Lucas Duda tem fome. Esqueceu de tomar café, é o que diz.   Come bolacha Maria na cantina da escola, não quer café nem leite. Faz careta, cara de choro, dispensa conversa.   Hoje, Duda está menstruada. Conseguiu um absorvente com a servente. Mora com a vó, apanha hora e outra, às vezes vê a mãe.   Talvez vá ser atriz — faz teatro. Não consegue passar muito tempo sentada e é um redemoinho de desaforo. Sente o frio das pessoas, as bofetadas das palavras.   Inventa desculpas e verdades para ficar fora da sala. Saiu para beber água e voltou querendo ser acolhida. O professor de Matemática, que entende de exatas, impediu sua entrada.   Duda foi para a sala de leitura. Ficou sentada no chão, entre duas estantes, procurou alguns ...
É na terra que se adubam as roseiras
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É na terra que se adubam as roseiras

Alexandre Lucas Faz silêncio entre os barulhos. Abre a boca como quem quer abocanhar o mundo — é só um bocejo de quem não dorme. Põe João Bosco pra cantar às três da manhã. Um homem cruza a praça a caminho do mercado, vai descarregar caminhões de frutas. O gato deixa marcas no cimento fresco — gato fresco. O Cristo de braços abertos continua iluminado na praça onde os pombos dormem. Os galos cantam. Trégua pra João Bosco. Motores de carros lembram que a cidade não dorme toda. Três e quarenta e dois: toma goles de café, come uma banana, enxuga lágrimas, assoa o nariz. Chama Nando Reis. Toca Alô. Os galos ainda cantam, agora com o latido dos cachorros. Tudo parece fora do lugar. O ventilador parado tem ar de querer falar. Os desenhos no quadro observam os movimentos; as ma...