Literatura

A mulher do sonho
Literatura

A mulher do sonho

Alexandre Lucas Desfilava de biquíni, tinha uma tatuagem na coxa e balançava um sorriso. Deviam ser três horas da manhã; acabara de lembrar do sonho. Uma sensação de alegria ao ver aquele corpo ousando desafiar os seus limites. Gorda demais, magra demais, e meio-termo era sempre insatisfação para aquela mulher. No sonho, porém, ela parecia exibir volumes de contentamento. Os sonhos que se têm dormindo não são escolhidos. Aquele, em particular, poderia ser excluído da lista dos desejados. Aquela mulher — desfilando de biquíni, tatuagem na coxa, balançando um sorriso — seguia como uma estranha. Não estava para além do mar nem das estrelas; só a encontrava nos sonhos e, inesperadamente, nas lembranças. Os sonhos que se sonham dormindo bem que poderiam ser escritos. Escreveria toda...
A foto do buquê de rosas
Literatura

A foto do buquê de rosas

Alexandre Lucas Olhos de paixão e cansaço. Boca flácida, como se esperasse um beijo ou o espanto. Cabelos de fogo e um buquê enorme, rosas vermelhas tapando os seios e a garganta. O trem ao fundo parecia partir. Era a paixão esfumaçada, numa foto posta no varal da economia. O coração é uma flor triturada pelas máquinas de moer gente. As mesmas que trituram o vento e o tempo de aprender a amar. A foto já se perdeu entre a velocidade e a memória. As rosas vermelhas se plastificaram. As roupas escondem a verdade das formas e a sinceridade das primaveras. Já cancelei o prazer e o pôr do sol; as máquinas não me deixam sair, fabricam sorrisos estáticos despachados pelas telas dos celulares. Estão por todos os cantos: nas vitrines de maquiagem, nos supermercados e nas casas de carne, ...
Toca fogo
Literatura

Toca fogo

Alexandre Lucas Depositava seus segredos em guardanapos. Escondia-os dentro da primeira gaveta do guarda-roupa. Escrevia em suas saídas solitárias, no final da tarde, entre um café e um suco. Confidenciava para os guardanapos o que se escondia em seus silêncios. Sua gaveta enchia-se de histórias de desejos e pedaços de vida. Ninguém sabia de seus guardanapos eram mais guardados do que os próprios segredos. Chegava a reler cada confidência. Era como se estivesse desmontando um brinquedo pela primeira vez e, depois, não soubesse montá-lo novamente. Reuniu todos os seus segredos numa sexta-feira. Na hora do almoço, fez uma fogueira na praça e atirou-se nela, deixando a salvo os guardanapos. Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Ve...
Do signo de leão e suas imprevisibilidades: Cora Coralina
Literatura

Do signo de leão e suas imprevisibilidades: Cora Coralina

Émerson Cardoso O Signo de Leão é generoso, forte e imprevisível. Para nosso debate, apresentamos uma escritora que produziu seus textos desde cedo (e até publicava alguns deles de forma esparsa), mas sua primeira obra foi publicada apenas quando ela contava com 76 anos de idade. Esse livro lhe proporcionou imprevisível sucesso e, de repente, ela se tornou conhecida no Brasil inteiro, de modo que estamos diante da autora cuja produção literária representa um dos maiores legados de nossa literatura brasileira: Cora Coralina. Em verdade, ela se chamava Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, porém a vaidade leonina lhe fez optar por esse nome artístico (pseudônimo adotado ainda na adolescência) que a tornaria diferenciada das demais Anas da Cidade de Goiás, terra onde nasceu no dia 20 ...
As pulsões na Casa do Sentido Vermelho
Literatura

As pulsões na Casa do Sentido Vermelho

Luciana Bessa Algumas leituras são desafiadoras. É o caso da A Casa do Sentido Vermelho (2013), da escritora Jorgeana Braga, prêmio Aluísio de Azevedo no 34º Concurso Literário e Artístico da cidade natal da autora, São Luís do Maranhão. A obra começa com uma apresentação-pergunta do poeta Dyl Pires: “Qual o sentido do sensível em nós?”. Antes mesmo de continuar a leitura, silenciosamente busquei a resposta dentro de mim. Cedo me tornei amante das artes literárias, em especial, a literatura. Ela me salvou de um ambiente tóxico e pobre, material e emocionalmente. O sensível me forjou na mulher que me tornei hoje. Em uma sociedade individualista, capitalista marcada pelo cansaço e pela positividade tóxica, onde parte das pessoas vivem com a cabeça enterrada em seus celulares, ser sensí...
Sequestra-me
Literatura

Sequestra-me

Alexandre Lucas Ainda resta a noite para descobrirmos a dança. O café que marcava nossos encontros de manhã transformou-se no vinho da lua. Sequestra-me o tempo. Assopra as estrelas e embebe as palavras de perfume. Deixa que o blues nos vende os olhos. Dança com as luzes apagadas para sentir a delicadeza do vento e do calor. Traz a calmaria à meia-noite. Descansa teu corpo sobre as lembranças. Permite que o cheiro invada tua imaginação. Pela manhã, lembra-te da dança, dos passos improvisados, e atira flores contra os templos cinzentos até que desabem. Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho.
Mundinho da segunda-feira
Literatura

Mundinho da segunda-feira

Alexandre Lucas Não existe nenhuma combinação. Toda segunda-feira, no início da tarde, Seu Mundinho chega. Passos lentos, carrega uma sacola com a feira da semana. Pede uma cerveja, senta na mesa reservada. Vai ao banheiro, abre a carteira e vê quanto ainda resta. Mundinho me acena, chama-me para a mesa. Pergunta o que quero beber; tomo da mesma cerveja. Percebo que a maior sede dele é beber olhando nos meus olhos, como quem quisesse devorar meus sorrisos e sentir meus dedos massageando os calos de suas mãos. Parece que só isso basta. Só sei que, há anos, Mundinho nunca falta às segundas-feiras. Imagino que uma segunda-feira sem ele teria cara de feriado. Mundinho sempre deixa um agrado. Já deixou bombons, brincos e sementes de jacarandá. Parece um menino apaixonado, bobo, de o...
Eu era menino
Literatura

Eu era menino

Micael Sousa Eu era menino, menino que jogava bolinha de gude. Sonhava não tão longe, imaginar a brincadeira de amanhã já era mais que suficiente. Eu era menino, com rajas de lama, pele queimada de sol e o cansaço de correr em volta do campinho de terra. Voltas e voltas em torno de mim mesmo, porque ali eu era eu, eu menino. Mas o tempo, o tempo é um algoz dos meninos. Ele rouba o direito do menino ser menino. Se eu soubesse disso, teria desconfiado dele desde pequenino, quem sabe assim ele largasse do meu pé descalço e livre, pé livre de menino. Mas não, o tempo fez o que sabe fazer de melhor. Sobre a autor: Graduado em Direito Pelo Centro Universitário Doutor Leão Sampaio. Fascinado pela escrita.
Viver é político
Literatura

Viver é político

Izabelly Oliveira Nos últimos anos, tenho refletido sobre a importância da consciência política, pois nossas ações ou omissões na hora de escolher nossos representantes determinam se enfrentaremos crises, como uma pandemia, com uma gestão eficiente que garanta vacinas, métodos e precauções, ou se sofreremos as consequências da má administração, resultando em milhares de mortes. Por isso, viver é, de fato, político. Nessa experiência do viver é político no nosso país, revela-se a beleza da democracia, que nos permite lutar por uma vida melhor, com menos desigualdades de classe, raça e gênero, por exemplo. Dessa forma, torna-se fundamental que os cidadãos se apropriem de conhecimentos básicos, especialmente a partir de disciplinas como História para compreender a importância da demo...
O Conto da Aia: uma distopia nem tão distópica
Literatura

O Conto da Aia: uma distopia nem tão distópica

Luciana Bessa A primeira vez que fui apresentada ao Conto da Aia (1985), da escritora canadense Margaret Atwood, foi no clube de leitura – Ciranda do Livro – que acontecia mensalmente na Nobel, em Juazeiro do Norte. Em 2020, a livraria fechou suas portas. Antes disso, a unidade do Crato já havia encerrado suas atividades. Dados da Associação Nacional das Livrarias (ANL) mostram que em 2014, o Brasil tinha 3095 livrarias no país; em 2021, eram 2200. Depois da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2024), pela primeira vez na história, o país tem mais não leitores do que leitores, é preciso rever esse último dado. São tantos os fatores que levam uma livraria a fechar, que vou deixar essa discussão para um outro momento e me concentrar na ficção de Atwood. A segunda vez que e...