Literatura

Uns olhos cheios d’água ao ler Conceição Evaristo
Literatura

Uns olhos cheios d’água ao ler Conceição Evaristo

Luciana Bessa Conceição Evaristo é uma dessas escritoras versáteis que primeiro adotou o romance, Ponciá Vicêncio (2003), depois enveredou pelo conto Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), e ainda abraçou o verso: Poemas de recordação e outros movimentos (2017). Ressaltando que desde a década de 90, a mineira publica seus textos nos Cadernos Negros, uma publicação organizada desde o ano de 1978 pelo coletivo Quilombhoje, com o objetivo de dar visibilidade às vozes de autores afro-brasileiros. Eleita a intelectual do ano pelo Prêmio Juca Pato em 2023, concedido pela União Brasileira de Escritores, Evaristo concorreu a Academia Brasileira de Letras em 2018 para ocupar a cadeira de nº 07, cujo patrono é o poeta condoreiro Castro Alves.  Contudo, ao se recusar a bajulação habitual...
Maria Lúcia, Rua das Flores, 245
Literatura

Maria Lúcia, Rua das Flores, 245

Tay Oliveira Em um dia comum, como qualquer outro, me deparei sentada ao lado de uma senhora tão simpática que brilhava o olhar, ela me olhava, e sorria.  Um cheirinho de lavanda exalava do seu corpo, cabelo preso com grampinhos pretos de ferro se destacavam com o tom grisalhos dos seus ralos fios. Olhos baixos, boca pequena e bocejante, e um leve balbuciar que com o barulho intenso de pessoas ao redor, eu me esforçava para escutar.  Suas pequenas mãos, com sinais do tempo alisavam uma a outra logo depois que seguravam no banco da frente para se sustentar Algumas pessoas no ônibus, já bem cansadas — ora vindo do trabalho, ora indo — pediam pressa ao motorista. E ela, meio tímida e, apesar do cansaço da idade, me contou assim, devagar, mas embalando a história de sua vida pa...
O existir
Literatura

O existir

Gracynha Silva Buscando desafiar o caos existencial, elevar o tempo e desmarcar rótulos, segui pela calçada a caminhar, meio atordoado pela nova era: o mundo já não era mais o mesmo, mas insistia que nada mudara, pelo menos para mim.  Queria acreditar na própria fantasia que criara, e sucumbir ao caos eminente que soava aos meus ouvidos. Não precisava mostrar a verdadeira face ou precisava?! Era chegada a hora de existir ou já existira? Ana, Ana ... você está me ouvindo? Ela caminhava ao meu lado inerte, nem ela mesma acreditava nas mudanças que o mundo exigira de nós, meros mortais. CALE-SE! Não ver que sigo a pensar como será?! - Já reparou que tu pensas demais? Sim, meu caro, confesso que não encontro respostas plausíveis para essas indagações que insistem em caminhar comigo ...
Astrologia, Literatura e Autoria Feminina
Literatura

Astrologia, Literatura e Autoria Feminina

Émerson Cardoso A astrologia faz parte de nosso cotidiano. Talvez ela nos seja interessante porque, como sujeitos conscientes da finitude, somos motivados pelo desejo de nos irmanar com o cosmos que nos chega de algum modo por meio da astrologia com sua dança misteriosa de astros. Ela apresenta doze signos zodiacais, doze universos a serem desvendados e doze caminhos possíveis de autoconhecimento. O Nordestinados a Ler propõe, como um espaço lúdico de reflexão, doze textos que nos darão a oportunidade de conhecer figuras femininas da nossa literatura que representam cada um dos doze signos. Queremos, com isso, refletir sobre essas escritoras e instigar, principalmente, à leitura de suas obras. Vamos conferir a primeira delas? Do signo de Aries e seus impulsos: Lygia Fagundes Te...
O Interesse Humano: um convite ao diálogo
Literatura

O Interesse Humano: um convite ao diálogo

Luciana Bessa Há alguns meses, todas às quartas-feiras, às 19:30h, no Clube do Livro da Nova Acrópole -JN, eu e um grupo de pessoas que acreditam na Filosofia como uma ferramenta de educação que alia teoria e prática aplicada à vida, temos nos dedicado à leitura e ao diálogo do livro O Interesse Humano, do pensador e escritor indiano Nilakanta Sri Ram, que concebia a Natureza da Teosofia (“sabedoria divina”) como uma  sabedoria transformadora, assim como, pregava que há uma unidade por trás da diversidade. A obra é composta por trinta e cinco textos que versam sobre os mais diferentes assuntos: verdade, felicidade, desejo, karma, dharma, inocência, beleza, ilusão, juventude, valores, dentre tantos outros. Ou seja, os leitores são apresentados a um leque de possibilidades temátic...
Ando nu pelas manhãs
Literatura

Ando nu pelas manhãs

Alexandre Lucas Passou a noite remoendo as páginas de um livro velho, roídas e amareladas, temperadas por traças e fungos. O livro trazia receitas, mas pouco importava o que ele continha; entrar na contramão dos pensamentos era mais urgente. Escreveu durante a madrugada, umedecendo e atravessando os papéis. O livro velho servia de encosto. Espremia a velocidade da dor nas folhas. Amanheceu frio e ventoso. Onze páginas na mão, uma carta para não ser entregue. Releu, acendeu um incenso de rosa branca, tirou os óculos para enxugar as lágrimas. Tocava Coragem de Castello Branco, baixinho. Onze páginas na mão, procurava os erros que a gramática nunca encontraria. Diante da varanda, avistava o verde das folhas da chapada. Os pássaros cantavam e bicavam a banana pendurada no telh...
Celeste do Gesso
Literatura

Celeste do Gesso

Alexandre Lucas Na beira da calçada estava Celeste. Manhã, carros e pessoas passando. Saia rodada da cor de poeira, blusa azul de alça. Sobe a saia, acocora e mija. Levanta, acende o seu cigarro brabo e coloca uma sacola com mantimentos na cabeça e segue. A mão estendida de Celeste vai abordando quem cruza o seu caminho. Boca sem dentes, mastigando fumaça, dispara:— Me dê dois real. Celeste se aproxima como quem vai beijar, de tão próxima que fica. Visita a Padaria Nobre dez vezes ao dia. Aborda tudo que é de gente, quase beijando. Apenas as crianças ficam de fora.— Me dê dois real. Sai Celeste todos os dias, revirando o centro da cidade com a sua mão estendida. Caras franzidas, xingamentos e olhares de abraços. Às vezes, umas moedas; com sorte, dois reais. Final d...
Os dois dedos na garganta
Literatura

Os dois dedos na garganta

Alexandre Lucas Engasgou-se com alfinetes. Tarde de domingo, os lençóis secam ao sol. A criança vai para algum lugar, pendurada no tuntum do pai. O bar tocava a música de retalhar corações; duas mesas e olhares perdidos se encontravam por ali. Na calçada, o senhor de cabeça branca limpa as unhas dos pés com uma peixeira, enquanto, no pé da porta, a mãe catava os piolhos da filha. Os vestígios das pipas balançam presos nas árvores, e os meninos sobem para colher azeitonas. A paisagem é uma calmaria. Engasgado, no último andar: portas fechadas, janelas abertas. Um blues para acalmar e esconder a agonia. Os alfinetes travam as palavras, furam a garganta. Alguém bate na porta — é o vendedor de orações. O silêncio responde; o vendedor segue outro caminho. Engasgado, enfia ...
Bilhete para pequena flor
Literatura

Bilhete para pequena flor

Alexandre Lucas Lua crescente. O cheiro do cachimbo massageava como mãos. O chão era o assento da conversa. Pés descalços. Copos de barro. Luzes apagadas. O brilho da boca pronunciava dança. Bebia o espremido do limão com o gosto esparramado da hortelã. A meia-noite se aproximava e o pôr do sol não foi adiado. Dançava consagrando o instante, ritual sagrado do afeto. O cheiro das ervas percorria os olhos, fazendo rios na imaginação. Os dedos andavam com calma, tentando escutar a respiração; provável que quisesse ler a palma da alma. Vasculhou as pastas para sentir as cores, as formas e as texturas. Escolheu três imagens e deixou um rio, cheio de pequenas flores, que vão como barcos no balanço das águas. Julho é frio, venta e pede abraço. As ervas para o chá estão guardadas, espe...
Crítica: Na Praia à Noite Sozinha (2017)
Literatura

Crítica: Na Praia à Noite Sozinha (2017)

Natalia Silva Há filmes que contam histórias e há filmes que nos fazem olhar para dentro. Na Praia à Noite Sozinha do diretor sul-coreano Hong Sang-soo, pertence a essa segunda categoria: não é um filme que se apressa ou que busca agradar. Ele é, antes de tudo, uma pausa. Uma pausa rara e necessária em tempos em que tudo parece exigir respostas imediatas. Young-hee, interpretada de forma brilhante por Kim Min-hee, é uma atriz que se afasta do cenário público após um relacionamento com um diretor de cinema casado. Ela parte para a Europa tentando se distanciar da dor, da culpa, da exposição. Mas quando retorna à Coreia do Sul, percebe que a solidão e o arrependimento seguem presentes e discretos, mas firmes. O filme se move por paisagens frias e silenciosas, onde as conversas são q...