Literatura

Incômodo
Literatura

Incômodo

Ludimilla Barreira* Sentada no canto da cama, olho para o espelho e vejo o reflexo da desesperança. Levanto o olhar, na tentativa de lutar contra o torpor, mas é em vão. Não me reconheço. Enxergo apenas um amontoado de massa murcha que se movimenta lentamente, acompanhando a respiração. Parece que essa sou eu. Estou reduzida a essa casca? Cada vez que fecho os olhos, na tentativa de gravar o que vejo, percebo que me transformo, em uma velocidade cada vez maior, em algo que desconheço. No escuro da minha intimidade, abro as gavetas da minha mente, procurando as memórias que se conectam às imagens que se desfazem a cada piscada. Encontro papéis, mas não consigo ler as palavras, pois se desmancham em pequenas partículas ao tocar as minhas mãos, formando nuvens de poeira. Elas me sufo...
A ausência do celular não produz leitores
Literatura

A ausência do celular não produz leitores

Luciana Bessa Educar é um processo ético e inacabado. O trabalho de um professor vai muito além de “dar aula”. Esse profissional partilha conhecimento, estimula criatividade, a pesquisa, o senso estético do estudante, além de contribuir para o seu crescimento pessoal e profissional.  Uma das grandes dificuldades desse profissional diz respeito ao incentivo da leitura, principalmente em pleno século XXI, em meio a um mundo dominado pelas novas tecnologias. Em 2025, o Governo Federal sancionou a Lei 15.100/25, que proíbe estudantes de usarem telefone celular e outros aparelhos eletrônicos portáteis em sala de aula, em instituições públicas e privadas, salvo para fins pedagógicos. Trata-se de uma medida importante para mostrar que a escola não é um mero ambiente para expor conteúdo,...
Não tão bela adormecida
Literatura

Não tão bela adormecida

Dina Melo O vento arremessou os telhados Pequenos blocos de reboco caíram pelo chão O bolor subiu da terra úmida O sol descascou a tinta As frutas amareleceram esquecidas nos cestos Tudo cheirava a abandono Escassez Como adormecida, eu andava A poeira se acumulava nos móveis e, distraída, eu desenhava espirais, nuvens, corações Me movia lentamente, crendo que assim o piso não rangeria Sentava nas velhas cadeiras e me punha a remendar as roupas Tentava varrer o chão que desaparecia sob meus pés Tonta, punha flores nos vasos quebrados Comprava vidros coloridos Às vezes, numa fúria louca, bailava pela casa Saía ao relento para que minhas lágrimas se confundissem com as gotas de chuva Os azulejos estalavam Os canos vertiam água As raízes...
Era tarde da noite e eu nem percebi a vitória do breu
Literatura

Era tarde da noite e eu nem percebi a vitória do breu

Shirley Pinheiro As ruas vazias apressam meus passos. O caminho de volta é sempre muito escuro. E o silêncio que desliza pelo asfalto, derrete as solas dos meus sapatos. Hoje faz frio. Embora a chuva tenha cessado, o vento ainda respinga gotículas em meu rosto, como lágrimas que encontraram seu destino. Queria poder pular nas poças que se formam à beira da calçada, mas tenho um livro novinho na mochila que não ouso molhar. Aquelas páginas, ainda não lidas, exigem prudência. Então termino meu trajeto sem muitas extravagâncias. A chegada é sempre um alívio. Não que haja muita presteza ao fim da jornada. Geralmente é quando o peso do mundo torna aos meus ombros. Mas é também quando a casa, que não é lar, torna-se fortaleza. Ao subir as escadas, a solidão recua e os cômodos iluminados...
Tempos para fazer bolos
Literatura

Tempos para fazer bolos

Alexandre Lucas* Saudade de bolo de cenoura com cobertura de chocolate, isso pode ser um código anunciado meio dia e meio, ou a qualquer momento em que a ausência bate na porta para derrubar. Três dedos de vinho e uma preguiça imensa de ir comprar outra garrafa, a saudade pede vinho. Se possível trocaria a garrafa de vinho por esquecimentos seletivos, deixaria na memória apenas aquilo que não doesse. Mas não quero bolo de cenoura com cobertura de chocolate que me faz mal. Poderia tomar uma garrafa de amnésia para sustentar a realidade, mas elas não existem.  As folhas dançam, nem sempre podem ir com vento. Os bolos acabam. Ainda não acabei o vinho. Os planos para o dia seguinte estão amassados no bolso junto com molho de chaves que não encontram fechaduras. Mas amanhã é se...
As relações familiares na obra A Casa de Natércia Campos
Literatura

As relações familiares na obra A Casa de Natércia Campos

Luciana Bessa* A família, como é sabido, é o primeiro e o principal grupo familiar que nós humanos integramos. É preciso divisar a família que temos e a família que desejamos. Essa instituição, espaço de contradições, conflitos e harmonia, ao longo dos séculos, tem sido defendida pela Igreja, pelo Estado, sobremaneira, por seus membros para manter um status quo social. Para conservá-la intacta já foram cometidas inúmeras atrocidades, na realidade ou na ficção. A escritora cearense Natércia Campos (1938-2004), filha do contista Moreira Campos, sempre gostou de ler e de escrever. Contudo, somente ao se tornar avó decidiu compartilhar seus escritos com o público.  Estreou na literatura com uma obra de contos, Iluminuras (1988), prêmio na 4ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. Em seg...
Mais pedagogia, menos militarismo e mercado
Literatura

Mais pedagogia, menos militarismo e mercado

Alexandre Lucas* A escola é um espaço de contradição. Os resquícios da escola tradicional e tecnicista ainda estão presentes em discursos e práticas reducionistas e conservadoras, colocando como primário, regras de comportamentos que oprimem e silenciam o espaço da criticidade.  A ideia de disciplina ainda é focada na acepção militarista de organização que se contrapõe às concepções pedagógicas se propõem a apropriação contextualizada e crítica do conhecimento.    A escola é um espaço de confluência e conflitos de diversas concepções pedagógicas, alinhadas à manutenção do atual sistema político-econômico-social e também as que defendem uma outra perspectiva de sociedade. Entretanto, predominantemente as concepções pedagógicas que reproduzem política-ideologicamente as ...
Não se faz política cultural com atrasos e migalhas
Literatura

Não se faz política cultural com atrasos e migalhas

Alexandre Lucas* A cultura precisa ser percebida como investimento para construção de nova civilidade. Duas questões rementem a essa perspectiva: a primeira é a compreensão de cultura enquanto um projeto de sociedade, no nosso caso, com o recorte de classe, ou seja, que sirva ao processo de emancipação humana da classe trabalhadora. A segunda questão, é que não basta boa intenção, é preciso criar as condições materiais necessárias para que a cultura atinja escalas  ampliadas de acessibilidade para as camadas populares, os investimentos em infraestrutura devem promover o direito à cidade como parte do reposicionamento do olhar político, estético,  ambiental e educativo   para apropriação da diversidade e pluralidade cultural e artística, na confluência entre a contemporane...
Annie Ernaux: uma mulher sem vergonha
Literatura

Annie Ernaux: uma mulher sem vergonha

Luciana Bessa* Publicado pela primeira vez em 1997, A Vergonha, é o sexto livro que compõe o projeto literário da escritora francesa Annie Ernaux, que tem o objetivo de vingar sua raça, especialmente, investigar sua própria existência sob o prisma social. Nobel de literatura no ano de 2024, aos 82 anos de idade, graças a sua “coragem e acuidade clínica com que descobre raízes, os distanciamentos e as restrições coletivas da memória pessoal”. Coragem e ousadia são duas palavras que vestem bem autora e obra. O livro traz uma epígrafe do escritor norte-americano Paul Auster retirada da obra A invenção da solidão (1982): “A linguagem não é a verdade. Ela é a nossa forma de existir no universo”. Ernaux afirmará em  A escrita como faca (2023) que se apropriar da linguagem foi a forma ...
Uma política da palavra para os municípios
Literatura

Uma política da palavra para os municípios

Alexandre Lucas* Instituir a política do livro, da literatura e da leitura nos municípios é parte estruturante do Sistema Nacional de Cultura e da Política Nacional para o setor que vem sendo retomada pelo Governo Federal. Planejar de forma intersetorial a cadeia produtiva e fruitiva da palavra é essencial para reoxigenar a economia editorial e a ampliação e o   reposicionamento do olhar social e crítico.  O segmento da palavra é gigantesco: escritores, revisores, designers, produtores, livreiros, pesquisadores, bibliotecários, roteiristas, contadores de histórias, rappers, slammer, compositores, cordelistas, programadores, ilustradores, empresários, gestores, etc.  Instituir uma política para o setor é democratizar o acesso da palavra como instrumento de const...