Literatura

Mãos estendidas
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Mãos estendidas

Boca miúda, franzida. Dentes quebrados, outros amarelos. Murmurava canções desesperadas, a mão estendida. Olhos desenhados como mapas de cansaço. Senhora negra, quase setenta anos, provavelmente. Percorria ruas e mesas, trocando caminhadas por sobrevivência. Vestido florido, transitava entre olhares áridos e terras asfaltadas. Apanhava silêncios. Balanços de cabeça negando trocados. Eu tomava café e lia Federico García Lorca. A poesia dele desfolhava paisagens distantes e, de repente, colocava aquela senhora no centro da mesa. Sua boca franzida tocava meus olhos. Antes dela, eu também tentava a sorte — jogava na loteria a esperança. O jogo era do meu pai. A chance, mínima. Voltei para casa carregando nos braços o peso daquela boca. Ela não fazia poemas. Nunca leria Lorca. Naque...
Noticiário da Manhã
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Noticiário da Manhã

Alexandre Lucas Olhos brilhantes, aparentemente atentos, corpo deitado. Era segunda-feira, seis horas da manhã. Parte da cidade se espreguiçava; para outra, o dia já havia começado bem cedo. Apenas um gole de café, a barriga ainda vazia. Os olhos brilhantes, aparentemente atentos, e o corpo deitado estavam ali, na rua. Alguém passou, fisgou a imagem e desapareceu daquela paisagem. Era impossível saber o que acontecera. Restava apenas: olhos brilhantes, aparentemente atentos e corpo deitado. No canto, como quem não quisesse chamar atenção ou atrapalhar o fluxo, mantinha-se inerte. Os mais lentos conseguiam perceber. A cidade está veloz. A violência escorre sobre os olhos, parece natural. O almoço enlatado, as verduras dronadas de agrotóxico e o noticiário — suco de sangue — não ...
O bem-te-vi
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O bem-te-vi

Thais Andrade Todos os dias, costumava limpava meu jardim, nele havia pés de alecrim, erva daninha, samambaias, moreias, logo, era um local cativante, preenchido com um pouco de verde mesmo que contendo uma seletiva quantidade de plantas, já que ainda estava sendo montado aos poucos, ao mesmo tempo era também um atrativo para bichos e insetos que dele se aproximavam. Um certo dia, um lindo pássaro do qual não consegui identificar a espécie pousou próximo ao pé de carqueja, e ficou em cima de uma grade de ferro, virando o bico para o lado e para o outro como quem fosse atravessar a rua. Foi nesse momento que resolvi deixar a vassoura de lado, esqueci a poeira, e concentrei-me a contemplar aquela ave, pensei: “veja, quão despojada está esta ave, você parece carregar em suas asas uma liber...
A hora da estrela, romance de Clarice Lispector
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A hora da estrela, romance de Clarice Lispector

Marta Kécia Clarice Lispector encerrou sua carreira literária com a obra A Hora da Estrela, publicada em 1977, pouco antes de sua morte. Este romance singular não é apenas o testamento literário de uma das mais complexas autoras do século XX no Brasil, mas também uma inflexão significativa em sua produção: nele, Clarice abandona os ambientes de mulheres instruídas e melancólicas da classe média para lançar um olhar sobre a miséria social feminina, mergulhando na existência apagada de Macabéa, uma datilógrafa nordestina que vive na cidade do Rio de Janeiro. Essa virada, afirma Moser (2009), não representa um afastamento da subjetividade tão característica da autora, mas sim sua radicalização. Isso porque Macabéa, pobre, ignorante e submissa, personifica um “nada” social que, ao ser narra...
Coração na aldeia, pés no mundo
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Coração na aldeia, pés no mundo

Luciana Bessa Lançado em 2018 pela editora UK’A, Coração na aldeia, pés no mundo, da escritora cearense indígena Auritha Tabajara, é uma obra autobiográfica cantada em versos. Contudo, quando a autora traz à tona memórias, percepções e experiências de sua própria vida, ela possibilita que outras mulheres indígenas possam (re)pensar sua própria trajetória.  Sua primeira obra data de 2004, Magistério indígena em versos e poesia, adotada pela Secretaria de Educação do Estado. Em 2020, publicou o folheto Tabajara, toda luta, história e tradição de um povo. A escrita em rimas sempre foi uma das formas que Auritha encontrou para se posicionar no mundo. O cordel é o seu “grito de resistência” para aplacar “suas dores” e as “dores de outras mulheres indígenas” também silenciadas ao longo ...
Mastigando Rapadura
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Mastigando Rapadura

Alexandre Lucas Vazio preenchido de ecos do passado. A tarde transbordava ausências, grilos cantavam nos pensamentos. Seu corpo estendido no chão frio da sala dos livros, enquanto o reggae batia a dança das cobras. Lia sobre os tempos de chumbo e a rebeldia das palavras; foices contra balas, poemas fabricados como coquetéis molotovs nos aparelhos da clandestinidade. Sonhos montados sobre esperança, erguidos de braços e assobios. A tarde escancarava o desejo das multidões, mas só as lembranças compareciam. Ali, na trincheira da sala dos livros, tentava desenterrar o texto. Na guerrilha, há momentos sem pares nem água – às vezes é preciso recuar sete estrelas e sete sóis, para nunca mais voltar. À tarde, que já poderia ser noite, prosseguia. Lá fora, o filho desbravava a cidade em f...
Poemas do grito de liberdade 72, de Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro
Literatura

Poemas do grito de liberdade 72, de Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro

Émerson Cardoso Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro é uma intelectual do Cariri cearense que atua em frentes diversas. No âmbito literário, além de ter participado de performances poéticas, movimentos literários e antologias, a autora publicou, em 2022, o livro de poemas intitulado 72.  Com temáticas variadas, o livro dispõe de ousadas incursões no que diz respeito ao conteúdo e à forma. Composto por mais de 72 poemas, ele traz linguagem objetiva capaz de expressar de forma direta, e não menos poética, percepções e reflexões de uma autora experiente em seu ofício. Metáforas, aliterações, sinestesias, dentre outros recursos estilísticos utilizados por ela, estão a serviço de uma construção expressiva e polissêmica do texto. Em poemas curtos ou amplos, tudo concorre, na escrita ...
Escola Pública como farol para políticas de editais culturais
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Escola Pública como farol para políticas de editais culturais

Alexandre Lucas A política de editais no campo da cultura tem sido uma das principais formas de viabilizar o acesso a recursos públicos para o fomento cultural no país. Entretanto, tais recursos ainda estão distantes de atender às demandas sociais. A relação entre o que é ofertado pelo Estado e o que é demandado pela sociedade apresenta um contraste que evidencia nossa distância de um "SUS da Cultura" — objetivo que não deve ser descartado, mas, ao contrário, reforçado. Estamos em um processo político e jurídico para fazer a engrenagem do Sistema Nacional de Cultura funcionar com a responsabilização da União, dos estados e dos municípios. A Lei Aldir Blanc I, a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) são exemplos desse processo em curso, alinhadas à regulamentação do ...
Mundo
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Mundo

Francisco Joherbete Às vezes o mundo nos bate Se aproxima de cada um de nós E chuta Sem medo de abater. Às vezes cospe no chão Nós temos que secar A vida é apenas um passatempo E o mundo venha nos maltratar. Muitas vezes a solidão Nos pega de repente E o único aconchego que recebemos É mais um date com esse mundo Divergente. O tapa na cara A cuspida no rosto O chute sem graça E o fogo nos outros. São coisas do cotidiano Que não vêm mais nos surpreender Pois já estamos acostumados De tanto sofrer. Às vezes o mundo quer Sempre nos acalentar Mas sabemos que o fim é o mesmo A cova de esperará. Sobre o autor: A chave da vida é a palavra, por isso escrevo com nenhuma vergonha na cara, "as minhas palavras atraíra...
Resenha crítica de O Quinze, romance de Rachel de Queiroz
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Resenha crítica de O Quinze, romance de Rachel de Queiroz

Marta Kécia Publicada em 1930, O Quinze representa não apenas a estreia literária de Rachel de Queiroz, mas também um marco fundamental na literatura brasileira por inaugurar uma escrita feminina com caráter crítico, social e político em plena efervescência do Modernismo de 1930. Com apenas dezenove anos, a autora cearense rompeu as barreiras impostas a mulheres escritoras e lançou um romance que aborda, com crueza e lirismo, os flagelos da seca nordestina, traçando um retrato pungente da miséria e da resistência de um povo, ao mesmo tempo em que inaugura uma representação feminina vigorosa e complexa. (Sarmento; Moura, 2023). Conforme Tavares (2022), a autora desafia os estereótipos sociais da época ao criar personagens femininas que resistem à dominação e reivindicam autonomia, e C...