Literatura

Os dois dedos na garganta
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Os dois dedos na garganta

Alexandre Lucas Engasgou-se com alfinetes. Tarde de domingo, os lençóis secam ao sol. A criança vai para algum lugar, pendurada no tuntum do pai. O bar tocava a música de retalhar corações; duas mesas e olhares perdidos se encontravam por ali. Na calçada, o senhor de cabeça branca limpa as unhas dos pés com uma peixeira, enquanto, no pé da porta, a mãe catava os piolhos da filha. Os vestígios das pipas balançam presos nas árvores, e os meninos sobem para colher azeitonas. A paisagem é uma calmaria. Engasgado, no último andar: portas fechadas, janelas abertas. Um blues para acalmar e esconder a agonia. Os alfinetes travam as palavras, furam a garganta. Alguém bate na porta — é o vendedor de orações. O silêncio responde; o vendedor segue outro caminho. Engasgado, enfia ...
Bilhete para pequena flor
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Bilhete para pequena flor

Alexandre Lucas Lua crescente. O cheiro do cachimbo massageava como mãos. O chão era o assento da conversa. Pés descalços. Copos de barro. Luzes apagadas. O brilho da boca pronunciava dança. Bebia o espremido do limão com o gosto esparramado da hortelã. A meia-noite se aproximava e o pôr do sol não foi adiado. Dançava consagrando o instante, ritual sagrado do afeto. O cheiro das ervas percorria os olhos, fazendo rios na imaginação. Os dedos andavam com calma, tentando escutar a respiração; provável que quisesse ler a palma da alma. Vasculhou as pastas para sentir as cores, as formas e as texturas. Escolheu três imagens e deixou um rio, cheio de pequenas flores, que vão como barcos no balanço das águas. Julho é frio, venta e pede abraço. As ervas para o chá estão guardadas, espe...
Crítica: Na Praia à Noite Sozinha (2017)
Literatura

Crítica: Na Praia à Noite Sozinha (2017)

Natalia Silva Há filmes que contam histórias e há filmes que nos fazem olhar para dentro. Na Praia à Noite Sozinha do diretor sul-coreano Hong Sang-soo, pertence a essa segunda categoria: não é um filme que se apressa ou que busca agradar. Ele é, antes de tudo, uma pausa. Uma pausa rara e necessária em tempos em que tudo parece exigir respostas imediatas. Young-hee, interpretada de forma brilhante por Kim Min-hee, é uma atriz que se afasta do cenário público após um relacionamento com um diretor de cinema casado. Ela parte para a Europa tentando se distanciar da dor, da culpa, da exposição. Mas quando retorna à Coreia do Sul, percebe que a solidão e o arrependimento seguem presentes e discretos, mas firmes. O filme se move por paisagens frias e silenciosas, onde as conversas são q...
Duína: uma suíte em silêncio
Literatura

Duína: uma suíte em silêncio

Luciana Bessa Depois de quatro livros de contos publicados, a escritora paraibana Marília Arnauld, em 2012, nos apresenta seu primeiro romance, Suíte de Silêncios, centrado na protagonista Duína Torealba, uma violinista frustrada e entorpecida pela dor de ser e de estar no mundo. O termo suíte pode ser interpretado a partir de duas concepções: 1) quarto com banheiro privativo. Neste espaço, as personagens lambem suas dores. 2) na música, uma sequência de peças instrumentais com a mesma tonalidade, mas com andamentos diferentes que formariam uma composição. A estrada palmilhada é uma sequência de dores vivenciadas pela protagonista. Quanto ao silêncio, ele acontece no exterior das personagens, pai, mãe, filhos, que ao não verbalizarem suas agonias e seus lutos, tornando-se pessoas ens...
Dorinha foi pra rua
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Dorinha foi pra rua

Alexandre Lucas Abria Eduardo Galeano – Dias e Noites de Amor e Guerra. Peço um café. Sou interrompido com um bom dia. Uma companheira de luta, cujo nome desconheço, me oferece um exemplar do A Verdade. Antes de comprar, conversamos rapidamente. Pedi dois exemplares, mas, como boa militante, só restava um. Saiu, deixando pólvoras de esperança. Era manhã de sábado. Aos sábados, visito o centro da cidade para bisbilhotar e fazer as apostas do meu pai, que sonha em ganhar na loteria. Aproveito sempre para tomar café e ler algumas páginas; às vezes, ganho companhia, que não atrapalha em nada a leitura. No balcão, leio A Verdade entre goles de café. Paro a leitura. A mulher pede uma dose sem equilibrar as palavras e as pernas. Pergunta se posso pagar uma dose; ofereço ...
Parede laranja
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Parede laranja

Alexandre Lucas Fecho o livro. O menino olha fixamente para a parede cheia de palavras, sua mão segura o queixo e tapa a boca. As palavras não fazem sentido algum quando não se sabe ler.   O menino até tentava juntar as letras para soletrar nexos.   A parede recebe a fúria e a ternura, as dúvidas e os desencontros. É permitido escrever na parede laranja, uma lousa transformada num confessionário público, a censura quase não existe. A gramática tem regras, e a linguagem é uma liberdade rodeada de grades. A parede laranja é um começo para romper com as palavras engasgadas no medo e nos arames farpados das normas do silêncio.   O menino que lia o que não sabia descrever já não estava mais na sala, impossível quantificar as suas leituras.   A parede...
Eco
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Eco

Geysi dos Santos A vida é um eco, um vasto rio, Onde cada palavra, um seixo atirado. Causa e efeito, um eterno fio, O que se diz, jamais apagado. Pois a boca profere, mas o ar leva, E a mente recorda, o tempo não cala. Todo dito tem sua própria seiva, E a colheita, um dia, nos fala. Sobre a autora: Geysi dos Santos - Estudante e integrante do Clube da Palavra do Colégio Municipal (Crato)
Maria talvez não saiba
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Maria talvez não saiba

Alexandre Lucas - Ladrão, ladrão. Gritava, o bodegueiro com o facão em punho, atacando o balcão. Isso aconteceu quinta-feira, estava dormindo. Acordo atoado. Pego o celular: “Policial militar é morto a tiros ao sair de partida de futebol”. Leio a matéria: estava acompanhado da esposa. Os assassinos não foram identificados. Vários tiros, alguns na cabeça. De acordo com Clarice Lispector: “Uma bala bastava. O resto era vontade de matar”. Escuto Sabotage e Jorge Mautner, próximo do meio-dia. Hoje é domingo, tento criar minha rotina, lá fora tem jogo, mas não queria soar assim, queria conversas leves e massagens fáceis. O bodegueiro ainda mantém a bodega aberta. No domingo, vende mais e as notícias das vidas alheias preenchem as prateleiras. Sabotage e Jorge Mautner canta...
Voadores
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Voadores

Alexandre Lucas Pássaro grande que conheço é o Urubu. A águia que nunca vi, aparecia na TV, parece que tudo que não é nosso, aparece como sendo na televisão. Por exemplo, é difícil ver um filme nacional nas emissoras do Brasil. Os Urubus os encontravam todas as manhãs. Eles ficavam no muro amarelo do prédio onde foi o Cabaré do Vitorino, aliás a boate, como era chamada. Ficavam ali sem império, vistoriando as sobras de comidas, as carnes em putrefação. Menino, passava horas admirando os Urubus. A linha do trem nos dividia, o trânsito era restritivo, nem todo mundo ultrapassava a linha, os prazeres da carne estavam tabelados logo a frente. Os Urubus já não os vejo por esses trechos. O muro amarelo já é outro, por ali, pelas manhãs escuto vozes de crianças, espero que elas  ...
Eu e Machado de Assis
Literatura

Eu e Machado de Assis

Luciana Bessa Não me lembro com precisão quando comecei a ler Machado de Assis (1839-1908), mas sei que não gostei. A linguagem rebuscada e o contexto histórico, século XIX, que aludiam suas narrativas, me eram completamente estranhos. Na flor da mocidade, algo me intrigava: todos os teóricos brasileiros que eu encontrava pelo caminho destacavam o brilhantismo de Machado de Assis. Quando descobri que Harold Bloom (1930), crítico de literatura americana, descreveu Machado como “o maior gênio da literatura brasileira do século XIX” e “o maior escritor negro da história da literatura universal, eu disse a mim mesma: “garota, leia Machado de Assis”. Foi o que fiz. Ouvi falar de uma possível traição de Capitu ao marido Bentinho. Resolvi começar a ler Dom Casmurro (1899). Com seus “olho...