Literatura

Ainda não estou em casa
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Ainda não estou em casa

Alexandre Lucas Teus olhos são mar noturno. Tem horas que dar vontade de viajar sobre asas de borboletas, mas tem horas de querer fugir. A noite é misteriosa, esconde os caminhos. O mar não tem caminhos. Teus olhos ficam no meio do caminho. Sei que faz calor, mas os ventos não conspiram e o mar está distante. Se pelo menos pudesse alugar a felicidade, ela seria uma casa grande, cor clara, ventilada, teria um canto para cada coisa, teria espaço para andar e correr e, em cada lugarzinho, um convite para amar... devo acordar.Era um sonho. Os sonhos são maiores que o universo. O universo a gente tenta dominar, já os sonhos são mais difíceis. Na redação tento colocar as pautas em dia. A notícia não pode passar do tempo, se não é como pão de um mês, fica duro e mofado. Os teus olhos est...
<strong>Santo quebrado</strong>
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Santo quebrado

Alexandre Lucas O espelho grande cabia o seu corpo. Nua, desembaraçava o cabelo, depois de uma guerra de prazer. Encarava o espelho como se estivesse pagando a conta de um jantar ruim e caro. Olho no olho, alguns desvios para o copo com sobras quentes de vinho. Sua cabeça doía como se tivesse um sino badalando. A louça ainda dormia na pia.O café para fazer, amargo e forte. As cinzas de incenso estavam espalhadas na penteadeira. A estátua quebrada na beira cama, Santo Agostinho, tinha se partido com suas contradições. Os lençóis molhados exalavam cheiro forte e um clima abafado. Ela nua penteando os cabelos. A casa vazia como o sexo da noite anterior.A língua seca de quem passou a noite revirando os olhos, um pouco de água. A idade já não permitia tantas travessias. Aos pentear os cabelo...
<strong>A poesia que ficou na geladeira</strong>
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A poesia que ficou na geladeira

Alexandre Lucas Meu amor, o chocolate se venceu, a poesia deixei descuidada na varanda e ela ficou paralítica. Estou cansada, tenho roupas para lavar, mas me faltam sabão e coragem.  Você lembra que já participei do teu sorriso? Faz tempo, hoje, consigo no máximo ser sua bolacha de distração, aquela que se come de vez em quando.  Deixei algumas cartas não enviadas: estão no baú que me serviu de cama. Por favor, entregue aos destinatários. Tem uma que é para você: guarde para as horas de luta.  Sempre escrevi como um manifesto de amor, mesmo quando a escrita estava molhada de sangue e firme de raiva.  Outro dia, estava lembrando quando abrimos as portas das gaiolas e os pássaros puderam desaparecer. Foi libertador. Imagina se tivéssemos asas, poderíamos até voar...
Ventos
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Ventos

Alexandre Lucas A porta está aberta, nenhum compromisso para hoje. Posso sair e virar a noite abrindo as pernas e assobiando, rindo alto e mapeando estradas desconhecidas. A lua está cheia, mas poderia estar do formato que quisesse. Posso gritar e me embriagar, chegar depois do sol. As pernas conseguem andar o bastante, nem preciso tomar café, sem sono algum. Hoje, o som das ruas está mais agradável. Desliguei o jazz que sempre acalma, mas infelizmente o repertório estava como uma sopa sem verdura e sal, intolerável. Estou pronto: banhado, cheiro na validade e roupa limpa. Na carteira, tenho o suficiente para esquecer o meu nome e o caminho de casa. Parece-me que os lugares estão fechados. Vejo pela fresta um redemoinho e uma criança rodopiando sem conseguir se segurar....
Mulheres que escrevem
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Mulheres que escrevem

Luciana Bessa Ser quem eu sou, mulher-nordestina, me impulsionou a criar o Blog Literário Nordestinados a Ler, ferramenta que tem o propósito de criar e fomentar a literatura produzida na região Nordeste, marcada pelas desigualdades sociais e econômicas, mas com um histórico de lutas e talentos, especialmente concebida pelas mulheres, que durante décadas, foram negados o acesso à leitura e à escrita.Ser mulher em uma sociedade patriarcal não é fácil. Ser mulher-escritora, então, nem se fala. A história das mulheres, dentro ou fora do universo literário, foi/é marcado pela exclusão, pela violência e pelo silenciamento. Sem voz, tiveram que assistir, a deturpação de si.A naturalização do papel secundário da mulher, o servilismo e o fato de não frequentarem os bancos escolares e acadêmicos...
Julgada
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Julgada

Alexandre Lucas O corpo estava desenhado de dor, camuflado entre terra e mato, a pele parecia brotar do chão, a tatuagem dava nome: cova rasa. Era o suficiente sabe disso para revirar os olhos, coçar a cabeça e remoer o estômago. Para alguns isso não era satisfatório, se fazia necessário panfletar a brutalidade, como se estivesse espalhando flores. Não era cinema com violência, mas a violência sem dramaturgia. A mão na cabeça já não pedia consciência. Os gritos desesperados para parar aumentavam a dosagem de selvageria. A faca fez vala como se fizesse rede de pesca. Na arena romana, a festa se fazia da morte dos bichos. Na arena de hoje, os bichos estão salvos, com algumas exceções. O tribunal da morte dava a sua sentença acompanhado de aplausos e filmagens. A vida é real, a...
<strong>Eu não sou flor</strong>
Literatura

Eu não sou flor

Por Alexandre Lucas* Floresça! Era o nome bordado no bastidor, ao lado da imagem de uma mulher segurando um coração exposto e um ramalhete de flores. Uma manta cobria seus cabelos. Olhos claros, olhar sério desses que impõem medo, mesmo sendo pintura.Tentava escrever um monte de palavras para não passar despercebida. Aquela mulher do quadro não parava de me olhar, como se tivesse vida. A palavra floresça parecia se juntar aquele quadro, apesar de não fazerem parte da mesma composição. Mesmo estando aparentemente tudo parado, tinha certeza de que estávamos em movimento e transformação: eu, o quadro e a palavra. Floresça mais parecia uma receita pronta, vendida nos consultórios de felicidade. Hoje é comum vender frases como remédios para curar toda e qualquer enfermidade. Basta crer...
<strong>Um desconhecido para se conhecer: Raimundo Lázaro Ribeiro</strong>
Literatura

Um desconhecido para se conhecer: Raimundo Lázaro Ribeiro

Muito além de carpinteiro, bilheteiro. Muito além disso, era um orgulho ser chamado de poeta. Raimundo Lázaro Ribeiro, nascido em 21 de setembro de 1924 em Campos Sales, no Ceará, que foi sua morada durante toda sua vida, escrevia suas rimas em qualquer pedaço de papel que tivesse espaço para alguns rabiscos. Muito conhecido em sua cidade, era teimoso, pois persistia em tudo que fazia, forte, foi guerreiro, venceu um câncer no auge  dos seus 80 anos. Sabia que a vida nunca era fácil para ninguém, mas em meio às dificuldades tinha seus momentos de graça e adorava fazer rima. Suas rimas eram sempre em formato de cordel, umas muito engraçadas, outras bem sérias e de cunho político, de tudo ele rimava, escrevia tudo o que via, principalmente se aquilo que ouvia lhe causasse estranhamen...
Viva João Ubaldo Ribeiro
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Viva João Ubaldo Ribeiro

Luciana Bessa “À merda com essa gente, o que eles sabem? Ninguém sabe nada, ninguém estuda, ninguém pensa, todo mundo se compraz em repetir as besteiras que mais satisfazem suas neuroses e inseguranças”. (João Ubaldo Ribeiro)O espaço é pequeno para mostrar a vivacidade de João Ubaldo Ribeiro, romancista, contista e cronista, dono de uma escrita contundente sobre seu tempo. Nascido em 23 de janeiro de 1941, na ilha de Itaparica (BA), Ubaldo é filho de Maria Filipa Osório e Manuel Ribeiro, político e professor, que não concebia que uma criança, aos sete anos de idade, não soubesse ler e escrever. Contratou um preceptor para ajustar essa falha. A exigência de seu pai fez nascer, para além de um leitor profícuo, um escritor ganhador do Prêmio Camões e criador de uma obra celebrada pelo púb...
<strong>Leitor: um descobridor de mundos</strong>
Literatura

Leitor: um descobridor de mundos

Luciana Bessa Eu disse em outros textos, meu apreço pelo mês de janeiro. Para além de estabelecer metas e projetar os meses seguintes, celebramos datas importantes: uma delas é o dia do leitor (07 de janeiro). Os rios secam, as paixões acabam, o corpo envelhece, o autor morre, mas o livro renasce cada vez mais forte e pungente cada vez que é lido. Leitor? O que seriam dos autores e de suas obras literárias se não fossem os leitores? A própria existência da Literatura estaria comprometida, porque não há arte sem público. Sem leitor, os autores produziriam suas obras e elas ficariam empoeiradas e esquecidas nas estantes das livrarias e das bibliotecas (alguém questionaria o porquê de sua existência?), ou no fundo de uma gaveta. Um livro fechado é como uma casa sem dono. Não a...