Literatura

<strong>Nossos porões</strong>
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Nossos porões

Por Alexandre Lucas* Hoje não quero economizar desaforos. A paciência destemperou, muito sal, muito doce. Vou pichar os muros da cidade, esmurrar as paredes, escancarar as feridas abertas da América Latina e do meu coração. Sairei sem destino, conexão e clandestino. Direi gritos para os ventos, derrubarei estátuas. Hoje é dia de pegar a faca e sair abrindo o olho para enxergar o mundo que nos cega. Sangro enxergando melhor, sangro cego, sangro com a América Latina e como os versos doloridos das minhas pisadas. Caminho com o punhal no peito, com a dor na cara e com os dentes afiados. Hoje vou riscar o meu quadrado, cuspir e mijar no chão.  Os versos de agora não serão adoçados, serão servidos amargo, forte e esquecido de açúcar. Hoje não plantarei rosas, nem distribuirei ca...
<strong>Rádio e Literatura: em sintonia com a palavra</strong>
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Rádio e Literatura: em sintonia com a palavra

Luciana Bessa Na minha adolescência, descobri o poder do rádio e o gosto pela música, principalmente, ao dormir. Embalada pelas melodias americanizadas da década de 80, construí um imaginário de como seriam os bastidores de uma rádio e de como seriam seus locutores. Esse momento nostálgico deve-se ao fato de que, em 13 de fevereiro, comemora-se o Dia Mundial do Rádio, data instituída há 77 anos, quanto da criação da rádio das Nações Unidas. O Dia Mundial do Rádio foi proclamado na conferência Geral da UNESCO, em 2011, com o objetivo de conscientizar o povo da importância do rádio, como um meio de comunicação rápido, democrático e acessível, capaz de levar a informação para lugares longínquos e inóspitos. Foi também uma forma que a UNESCO encontrou de melhorar a cooperação internac...
O ventilador no meio da rua
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O ventilador no meio da rua

Alexandre Lucas Ainda é cedo para sonhar, dizia o senhor com a camisa aberta e os botões perdidos. Enquanto o pombo com seus passos curtos ousava em roubar a comida do gato, podia não sonhar, mas sabia voar.  Cheia de planos observava o pombo e o senhor descrente.  A ansiedade dava sinais de presença, o único controle que tinha era o da televisão. Na televisão a vida parece ser mais fácil. Tudo é sempre mais bonito: os homens, as roupas, as casas, até a falsidade, mas a vida real é cheia de mondrongos.  Ainda não matei a esperança, apesar dos sinais de cansaço. Ligo o ventilador no meio da rua, já que as árvores foram cortadas e não existe mais um pé de vento. Talvez queira chamar atenção mais do que esfriar o tempo e discordar do senhor, que disse que era cedo para...
<strong>Enquanto dormia</strong>
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Enquanto dormia

Alexandre Lucas É meia-noite, estou parada, ainda não descobri o caminho de volta, também não sei se quero voltar e nem para onde. Talvez deva seguir. A rua está deserta, a sensação é que sempre estive aqui. A rua é sempre uma prisão sem grandes.  Parada, observo o barulho do silêncio.  Hoje o vestido vermelho está composto, é tecido grosso, não sinto frio. É possível aguentar a noite toda. O gato corre atrás do rato, mas o buraco era bem menor e o gato não entrou. O cachorro late com o vento que arrasta as folhas, enquanto me ocupo com risos.  Vou ficando parada, as coisas parecem que também pararam. O gato, o rato e o cachorro resolveram parar.  Talvez fosse preciso uma explosão para disparar gritos, circular corpos e encontrar soluções.  Não tem expl...
<strong>Chá inventado</strong>
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Chá inventado

Alexandre Lucas A panela velha virou um jarro, plantei boldo para dias de dor de barriga. Confesso que esqueço de colocar água, mas ele é resistente: cresce rápido. Na escola usamos chá de boldo para todas as insatisfações: dor de cabeça, cólica, ansiedade, gases, inchaço e até raiva.  Acredito que o boldo não seja milagroso, talvez ele seja uma espécie de mentira e crença para disfarçar o problema real. A gente inventa que ele serve para muita coisa e as pessoas acreditam. Quando não conseguimos explicar a realidade, a partir da ciência, inventamos outras formas para entender a nossa relação com o mundo. A gente inventa histórias e vai dando esqueleto e musculatura para as ideias.  A gente precisa acreditar em alguma coisa.  Tem gente que acredita em rochas mágicas, n...
Jarid Arraes: uma peixinha-sereia
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Jarid Arraes: uma peixinha-sereia

Luciana Bessa Há quem diga que filha de peixinho, peixinho é. Eu sempre me pergunto se não seria certo dizer: filho de peixinho é o que ele quiser. Sendo Jarid Arraes filha de Hamurabi e neta de Abraão Batista, conhecidos por seus trabalhos com cordéis e xilogravuras, que caminhos ela poderia percorrer? Muitas são as possibilidades, mas Jarid resolveu palmilhar, não a estrada pedregosa de Minas Gerais, essa ficou para o poeta Carlos Drummond de Andrade, mas a de Juazeiro do Norte. Aqui, nasceu em 12 de fevereiro de 1991, mas, atualmente, mora em São Paulo e, embora tenha enfrentado inúmeros desafios e escutados muitos “nãos”, publicou As lendas de Dandara (2016), Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (2017), Um buraco com meu nome (2018), Redemoinho em dia quente (2019) e, ma...
Sobra algo
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Sobra algo

Alexandre Lucas Acabei de tomar banho e os pensamentos continuam sujos. Sobram dois dedos de vinho, mas já estou embriagada sem beber. Abro a boca, é sono mesmo, quero resistir, mas me faltam forças. A vizinha diz que, se a noite for boa, a manhã será maravilhosa, faz sentido, mas não é uma regra. A outra vizinha diz que o dia de amanhã a Deus pertence, deve ser por isso que o dia de hoje está esse inferno, porque só amanhã será de Deus. Hoje estou flertando com as minhas interrogações. Nada mais. Sem paciência para jogos de cartas, sempre perco. Os dois dedos de vinho estão me esperando, um compromisso que não tenho. Hoje é sábado, exatamente sábado, dia em que o prazer bate pernas e a noite não dorme. Eu, já não faço parte desta paisagem, estou intocada dentro dos meus medos e c...
Ainda não estou em casa
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Ainda não estou em casa

Alexandre Lucas Teus olhos são mar noturno. Tem horas que dar vontade de viajar sobre asas de borboletas, mas tem horas de querer fugir. A noite é misteriosa, esconde os caminhos. O mar não tem caminhos. Teus olhos ficam no meio do caminho. Sei que faz calor, mas os ventos não conspiram e o mar está distante. Se pelo menos pudesse alugar a felicidade, ela seria uma casa grande, cor clara, ventilada, teria um canto para cada coisa, teria espaço para andar e correr e, em cada lugarzinho, um convite para amar... devo acordar.Era um sonho. Os sonhos são maiores que o universo. O universo a gente tenta dominar, já os sonhos são mais difíceis. Na redação tento colocar as pautas em dia. A notícia não pode passar do tempo, se não é como pão de um mês, fica duro e mofado. Os teus olhos est...
<strong>Santo quebrado</strong>
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Santo quebrado

Alexandre Lucas O espelho grande cabia o seu corpo. Nua, desembaraçava o cabelo, depois de uma guerra de prazer. Encarava o espelho como se estivesse pagando a conta de um jantar ruim e caro. Olho no olho, alguns desvios para o copo com sobras quentes de vinho. Sua cabeça doía como se tivesse um sino badalando. A louça ainda dormia na pia.O café para fazer, amargo e forte. As cinzas de incenso estavam espalhadas na penteadeira. A estátua quebrada na beira cama, Santo Agostinho, tinha se partido com suas contradições. Os lençóis molhados exalavam cheiro forte e um clima abafado. Ela nua penteando os cabelos. A casa vazia como o sexo da noite anterior.A língua seca de quem passou a noite revirando os olhos, um pouco de água. A idade já não permitia tantas travessias. Aos pentear os cabelo...
<strong>A poesia que ficou na geladeira</strong>
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A poesia que ficou na geladeira

Alexandre Lucas Meu amor, o chocolate se venceu, a poesia deixei descuidada na varanda e ela ficou paralítica. Estou cansada, tenho roupas para lavar, mas me faltam sabão e coragem.  Você lembra que já participei do teu sorriso? Faz tempo, hoje, consigo no máximo ser sua bolacha de distração, aquela que se come de vez em quando.  Deixei algumas cartas não enviadas: estão no baú que me serviu de cama. Por favor, entregue aos destinatários. Tem uma que é para você: guarde para as horas de luta.  Sempre escrevi como um manifesto de amor, mesmo quando a escrita estava molhada de sangue e firme de raiva.  Outro dia, estava lembrando quando abrimos as portas das gaiolas e os pássaros puderam desaparecer. Foi libertador. Imagina se tivéssemos asas, poderíamos até voar...