Shirley Pinheiro
“— A gente combinamos de não morrer.
— Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. Vivo implicando com as novelas de minha mãe. Entretanto, sei que ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe que a verdade da telinha é a da ficção. Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. […] Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito…”
Em novembro de 2021, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, a escritora Conceição Evaristo, conhecida pela escrita das vivências (“escrevivências”) de mulheres negras em uma sociedade racista e misógina, afirmou que alguns dos textos de sua autoria são escritos com olhos d’água — “determinados textos eu escrevo chorando, literalmente chorando. […] Eu tenho que parar e tomar fôlego, para poder continuar a escrita”. Em meio às lágrimas encontra-se também o leitor de Conceição Evaristo, que se encanta com a dureza das palavras da autora, com habilidade de narrar, com poesia, as dores e a violência sofrida pelo seu povo.
Nascida em 29 de novembro de 1946, em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Conceição Evaristo é atualmente uma das maiores vozes negras no Brasil. A romancista, contista, poeta, professora e pesquisadora é formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Durante anos foi professora da rede pública de ensino carioca. Sua escrita demorou para ser publicada e sua estreia na literatura se deu na década de 90, com a publicação de contos e poemas na série Cadernos Negros, criada em 1978, por um grupo de jovens negros e negras que produziam literatura e desejavam um espaço de publicação em que pudessem expor seus trabalhos.
Se escrever é uma maneira de sangrar, a poética de “escrevivência” de Conceição Evaristo verte em sangue suas dores e memórias. E no sangue que jorra de suas palavras, ecoa a ancestralidade afro-brasileira, dá voz aos marginalizados trazidos à força para esta terra que ainda hoje os fazem sangrar e resiste, como sempre resistiram seus ancestrais. Conceição Evaristo poetiza personagens negros (principalmente mulheres) a partir do cotidiano, uma cena do dia a dia traduzida em contos, porque escrever também é vencer a dor. E Evaristo vence ao criar personagens negros humanizados, em contraposição às representações animalescas e sexualizadas presentes em outras obras da Literatura Brasileira.
Em 2018, Conceição Evaristo protagonizou um importante episódio da história da Academia Brasileira de Letras (ABL). A autora de Olhos d’Água (2014) foi derrotada pelo cineasta Cacá Diegues na corrida para substituir Nelson Pereira, à cadeira número 7, da casa de Machado de Assis. Conhecida pelo histórico de exclusão de grupos sociais, a ABL rejeitou a chance de eleger a primeira mulher negra para o seu seleto grupo de imortais. A candidatura de Conceição Evaristo tinha por objetivo expor a falta de representatividade negra e feminina na Academia e teve a maior campanha popular da história da instituição, mas ainda assim, só obteve um voto, dos trinta e cinco possíveis. No entanto, Evaristo não demonstra surpresa com o resultado e promete escrever um livro sobre esse acontecimento. Segundo ela, a Academia Brasileira de Letras é um reflexo da sociedade brasileira, que exclui negros, gays, indígenas e mulheres.
No entanto, com ou sem cadeira na ABL, Conceição Evaristo já é uma imortal da Literatura Brasileira. Sua história de vida, sua resistência e o sangue em suas obras já são parte da história brasileira, tal qual sua influência na luta política, feminista e antirracista.
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Fonte: EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água. RJ: Ed. Pallas, 2014.