De gêmeos e suas dicotomias existenciais: Ana Cristina César & Denise Emmer

Émerson Cardoso

Sendo o signo de Gêmeos dado a dicotomias, por que não considerar a produção literária de duas figuras femininas densas demais para serem esquecidas em nosso mundo artístico-literário pouco vivido em sua plenitude?

A proposta é prestar louvores e honras a Ana Cristina Cesar e a Denise Emmer. Duas almas capazes de comunicar, pela palavra, mundos poéticos construídos como forma emblemática de não admitir silenciamentos e suas reverberações nocivas.

O signo de Gêmeos, a propósito, lida nada bem com silêncios, pois move-se no mundo como se possuísse tentáculos comunicantes incapazes de aprisionamentos. Inteligência, diálogo, discursos convincentes, adaptabilidade e múltiplas direções caracterizam esse signo que está fadado a viver no ar, valsando no vento ou bailando nas tempestades, sempre disponível para o que é pensamento rápido, sobreviver no caos e compreender o que nada mais parece suscitar compreensão.

No mito grego, os irmãos Pólux (filho de Leda com Zeus) e Castor (filho de Leda com Tíndaro) eram amigos inseparáveis. Sendo Pólux imortal, quando se deparou com a morte de Castor, cuja morte foi ocasionada por uma lança, ele ficou desolado e pediu a seu pai para trazer o irmão do mundo dos mortos. Impedido de fazê-lo, Zeus concedeu ao filho a dádiva de poder dividir sua imortalidade com o irmão. Desse modo, em um dia eles viviam, no outro dia eles morriam. Para honrar o amor fraterno deles, Zeus transformou a dupla em uma constelação.

Com o espírito inclinado para formas e conteúdos diversos, no âmbito de variadas manifestações artísticas, Ana Cristina Cesar e Denise Emmer são duas geminianas que merecem toda atenção.

Ana Cristina Cesar nasceu no Rio de Janeiro, em 02 de junho de 1952, e atuou como escritora, tradutora, professora e crítica literária. Dentre as obras publicadas, destacamos: 1) Cenas de abril, 2) Correspondência completa, 3) Luvas de pelica e 4) A teus pés. Uma das mais significativas escritoras da poesia marginal ou geração mimeógrafo, ela realiza textos que não obedecem aos limites entre prosa e poesia. Além disso, a autora experimenta juntar aspectos biográficos aos aspectos ficcionais — disso resulta a construção de uma linguagem confessional e lírica.

No livro A teus pés, publicado originalmente em 1982, Ana Cristina Cesar retoma textos publicados anteriormente e os dispõe ousada e originalmente, uma vez que reconfigura os gêneros discursivos apresentados — trechos de páginas de diário e de correspondências aparecem reunidos a poemas curtos. O livro, em suma, é de poesia, prosa ou prosa poética? Em verdade, ele reúne essas três possibilidades do lírico, pois a liberdade criadora é o que mais importa para a autora — ela não se restringiria a um formato. Estão em pauta, nesse espaço de liberdades estético-formais, o tom intimista (atrelado ao contexto urbano repleto de experiências entre desafiadoras e desejantes) e o tom experimental (circunscrito pela necessidade de levar para a linguagem e para o gênero discursivo as experiências cotidianas entre angustiantes e apaixonantes).

No livro mencionado, a poeta apresenta um poema que tem tudo a ver com o signo de Gêmeos. Nele, há um flagrante de diálogo, regido pela curiosidade de quem tudo deseja conhecer e saber, ou há a participação nesse diálogo que surge no irremediável do cotidiano repleto de mundos aleatórios, automatizados, mas também líricos?

conversa de senhoras

Não preciso nem casar

Tiro dele tudo o que preciso

Não saio mais daqui

Duvido muito

Esse assunto de mulher já terminou

O gato comeu e regalou-se

Ele dança que nem um realejo

Escritor não existe mais

Mas também não precisa virar deus

Tem alguém na casa

Você acha que ele aguenta?

Sr. ternura está batendo

Eu não estava nem aí

Conchavando: eu faço a tréplica

Armadilha: louca pra saber

Ela é esquisita

Também você mente demais

Ele está me patrulhando

Para quem você vendeu seu tempo?

Não sei dizer: fiquei com o gauche

Não tem a menor lógica

Mas e o trampo?

Ele está bonzinho

Acho que é mentira

Não começa.

(Cesar, 2016, p. 22)

Outra geminiana a quem reverenciamos é Denise Emmer. Nascida no Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1958, ela detém tantas nuanças em sua formação intelectual e proposta artística que só poderia ter sol em Gêmeos: tem formação acadêmica em Física, pós-graduação em Filosofia, bacharelado em violino pelo Conservatório Brasileiro de Música, estudou piano clássico, escreveu mais de vinte livros (muitos deles receberam os maiores prêmio da Literatura Brasileira) e dispõe de uma discografia com oito títulos.

Denise Emmer é poeta, compositora e cantora das mais expressivas. Também atua como violoncelista da Orquesta Rio Camerata. Percebemos que sua arte se manifesta na música e na palavra esteticamente trabalhada e, seja na música, seja na poesia, ela é uma artista notável. Suas produções literárias são delineadas por um olhar intimista, crítico-reflexivo e sensível ao mundo que observa.

O livro da autora que gostaria de compartilhar foi publicado em 2018 e tem por título: Discurso para desertos. Ele está dividido em duas partes: 1) Desertos e 2) Discurso para desertos. A primeira parte concentra a maior quantidade de poemas e funciona quase como um passeio da poeta por suas experiências existenciais (consta nessa parte uma elegia, poema lírico dos mais bem delineados do livro, que é direcionado ao seu irmão). A segunda parte, menor em quantidade de poemas, evoca o título e apresenta uma voz lírica que se expressa em dez poemas curtos que, em verdade, mantêm uma unidade temática produzindo um poema épico moderno concentrado em atravessar, como em um passeio musical de sol e areia, a densidade da vida com seus desafios e belezas inesgotáveis. Dois poemas encerram essa parte: Aprendiz de segredos e Maestro de folhas.

Para compartilhar um dos poemas da autora, quando gostaria de apresentar todos, decidi apresentar o que faz alusão direta à astrologia: Geminus signum. Nele, a autora se autorretrata apresentando-se, por meio da voz lírica, como complexa figura do signo de Gêmeos, conforme percebemos a seguir:

               Geminus signum

Minha translação no mundo efemérides

Não modifica o tanto que suponho

As rugas não vincam a testa não transtorna

Apenas reduz o tempo dos meus sonhos

E se já fiz o tudo que me coube

Eu jamais soube qual das almas que seria

Múltiplas faces rios e denises

Todas se dizem possuintes dos meus ânimos

No plano etéreo o gemini signo me controla

E me transforma num parágrafo a cada dia

Se ora náufrago agora euforia

Ou estrangeira em minhas próprias cercanias

Se um dia acordo com a águia arguta aventureira

Noutro sou música arco e lira me traduzem

Se estranhas luzes descubro ao longe todavia

Serei poesia se por um dia ou vida inteira

                   (Emmer, 2018, p. 31)

Para finalizar, devo dizer que, além de ser amplamente premiada (APCA–Prêmio Associação Paulista dos Críticos de Arte, Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Internacional da UNESCO, Prêmio Nacional de Literatura do PEN Club do Brasil, Prêmio ABL de Poesia etc.), Denise Emmer dispõe de uma carreira musical repleta de sucessos. Várias canções compostas por ela transformaram-se em trilhas sonoras de telenovelas: Pelas muralhas da adolescência (Bandeira 2), Tema verde (Assim na terra como no céu), O amor contra o tempo e Montanhês (Bravo!), Pedra de ouro (O pulo do gato), Alouette (Pai Herói), Lavadeiras (Coração alado), Cavaleiro do Rio Seco (Voltei pra você) e Companheiros (Sinhá Moça).

Dentre seus álbuns, eu destacaria: 1) Pelos caminhos da América, 2) Canto lunar e 3) Mapa das horas. No primeiro, são perceptíveis as influências ibéricas e andinas presentes em canções como: Lavadeiras, Minha cidade suja, Missão e Colina branca (esta minha preferida do álbum). No segundo, há uma confluência de lirismo, observação sensível da vida e retomada de imagens da natureza em canções como: Moça de la mancha, O sol, Cama na calçada e Canto lunar (esta minha preferida do álbum). No terceiro, a compositora retoma poemas medievais transformando-os em canções de rara beleza, como: Cantiga da ribeirinha (do trovador Paio Soares de Taveirós), Partindo-se (do humanista João Ruiz de Castelo Branco) e Pois tanto gosto levais (do humanista Diogo Brandão). Nesse álbum, minhas preferidas são: O rei das esporas douradas, Estátuas gigantes, A força do mundo e Outros ventos (esta minha preferida).

Para concluir, ressalto o quanto me deu alegria trazer à tona os nomes e as obras dessas personalidades femininas criativas, sensíveis e profundas em suas propostas artísticas. Geminianas que são, elas são múltiplas em suas buscas estéticas e, com isso, legou para a Literatura Brasileira e para a Música Popular Brasileira relevantes contribuições.

Salve Ana Cristina Cesar! Salve Denise Emmer!

REFERÊNCIAS:

CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Companhia das Letras, 2026.

EMMER, Denise. Discurso para desertos. São Paulo: Escrituras Editora, 2018.

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

sobre o autor:

Émerson é de Juazeiro do Norte/CE. Pesquisador, professor e escritor. São de sua autoria: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011)os cordéis A Beata Luzia vai à guerra (2011) e A artesã do chapéu ou pequena biografia de Dona Maria Raquel (2012); A Revolta de Antonina (2015), A dança das contundências (2017), O Casarão sem Janelas (2018) e  O baile das assimetrias (2021).