Do signo de escorpião e suas intensidades não resguardadas: Cecília Meireles

Poeta, professora, pedagoga e jornalista, Cecília Meireles construiu um legado dos mais expressivos de nossa Literatura Brasileira. Criadora de imagens poéticas ricas em simbologias, a profundidade de sua obra lhe possibilitou entrar no cânone literário que, no contexto de sua atuação, era um espaço que excluía, invariavelmente, a produção literária de mulheres.

Sob o Signo de Escorpião, este signo de intensidades não resguardadas, Cecília Meireles nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 07 de novembro de 1901. Embora tenha se dedicado à narrativa e a textos ensaísticos, ela se notabilizou pela produção da poesia. Sobre seu nascimento, Cecília Meireles (1982, p. 03) afirma:

Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno […]. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei de perder. A noção ou sentimento de transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.

Esses acontecimentos, e outros que se seguiram, moldaram o olhar da autora sobre a existência e reverberaram em sua criação literária desde o início de sua carreira artística. Assim, esteve em seu campo de visão: o tempo e sua implacável fugacidade; a existência com suas relações humanas fadadas ora ao amor, ora à solidão; a relação, no campo formal, entre tradição e modernidade; a reflexão melancólica sobre a existência e a espiritualidade; a morte e suas reverberações no âmbito da perda, dentre outros aspectos.

Além disso, a obra de Cecília Meireles dispõe de: apuro formal (apesar da perspectiva moderna que preza pela simplicidade da linguagem), sensorialidade intensa (sinestesias), evocação do sonho, retomada da tradição para o desenvolvimento das temáticas para as quais direciona seu olhar e uso recorrente de imagens poéticas configuradas pelo uso de metáforas, aliterações e assonâncias que tornam seus poemas ricos em musicalidade.

Sabe uma curiosidade literária que parece pertinente no âmbito de nosso debate sobre o Signo de Escorpião? As duas autoras brasileiras que conseguiram, no início do século XX, a visibilidade necessária para firmarem-se no complexo cânone literário nacional (este mundo no qual preponderam grupos socialmente privilegiados e profusões patriarcalistas) eram do Signo de Escorpião: Rachel de Queiroz (na prosa) e Cecília Meireles (na poesia). Existiram outras escritoras produzindo no mesmo período, e algumas até conseguiram pleitear lugares para valorização de suas obras, mas essas duas escorpianas firmaram-se pelo talento e pelas estratégias criadas no sentido de entrarem e permanecerem no cânone — Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras e Cecília Meireles foi a primeira mulher a receber da Academia Brasileira de Letras, pelo livro Viagem, o Prêmio Olavo Bilac de Poesia.

Cecília Meireles é do signo da: renovação, persistência, criatividade, dedicação, lealdade e força. Apesar desses notáveis predicativos, os nativos desse signo podem ser: rancorosos, egoístas, desconfiados, destrutivos e, sobretudo, vingativos. Sendo Cecília Meireles do segundo decanato do signo, talvez por isso ela seja tão criativa, comunicativa, imaginativa e espiritualizada.   

Quanto à mitologia, o Signo de Escorpião está associado ao mito de Órion, o caçador que era filho do deus dos mares e que cometeu um crime imperdoável contra a deusa Ártemis. Para Junito de Sousa Brandão (1986, p. 269): “Tendo o filho de Posídon tentado violentar Ártemis, esta enviou contra ele um escorpião que o picou no calcanhar, causando-lhe morte instantânea. Pelo serviço prestado por Ártemis, o escorpião foi transformado em constelação, tendo aliás Órion sorte análoga”. Nesse sentido, as constelações de Órion e de Escorpião foram colocadas em lados opostos do céu, de modo que eles nunca se encontram. Enquanto uma constelação está mais visível no verão, a outra está mais visível no inverno. Com isso, fica configurada a oposição entre essas figuras mitológicas: Órion é punido, merecidamente, por seu crime contra Ártemis (deusa da natureza, da virgindade e da caça), enquanto o Escorpião é alçado ao mundo celeste como o guardião devotado e fiel da deusa capaz de terríveis vinganças quando está em pauta resguardar sua virgindade.

Além do livro Viagem (1939), dos mais relevantes produzidos no Brasil, a autora publicou: Espectros (1919), Nunca mais… e Poema dos Poemas (1923), Baladas para El-Rei (1925), Vaga música (1942), Mar absoluto (1945), Retrato natural (1949), Doze Noturnos de Holanda (1952), O Aeronauta (1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Canções (1956), Giroflê, Giroflá (1956), Obra poética (1958, renega os três primeiros livros), Metal Rosicler (1960), Solombra (1963), Ou isto ou aquilo (1964), Olhinhos de gato (1981), dentre outros.

Para discutirmos um dos livros da autora, trazemos o épico Romanceiro da Inconfidência, que foi publicado depois de dez anos de escrita e reescrita. Ele começou a ser construído após uma visita da autora a Ouro Preto, ocasião em que foi convidada a realizar reportagem em torno dos fatos ocorridos no Brasil no século XVIII, ocasião em que se deu a Inconfidência Mineira. A autora reuniu fatos históricos e culturais em sua obra e, para contar essa história, escolheu o gênero poemático romance.

O título do livro evoca esse  gênero poemático que, segundo Ana Maria Lisboa de Mello (2013, p. 12), corresponde à composição literária de caráter popular, em verso, cuja origem remonta à Idade Média (século XVI). Com essência lírica e épica, o romance era declamado com acompanhamento de música. A propósito, em depoimento sobre a construção do livro, Cecília Meireles comenta:

O “Romanceiro” teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de entremear a possível linguagem da época à dos nossos dias; de, não podendo reconstituir inteiramente as cenas, também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda (Meireles, 2013, p. 25).

Escolhida a forma poemática que lhe possibilitou dar voz às personalidades envolvidas nos fatos históricos aos quais acorre, ela teve, finalmente, como desenvolver seu épico. Assim, o livro é composto por cinco Falas, quatro Cenários, uma Imaginária serenata, um Retrato e oitenta e cinco Romances. Os poemas que recebem o título de Cenário retomam os espaços de Vila Rica (atual Ouro Preto).

Foi nessa cidade que, no século XVIII, houve a mais famosa manifestação com o objetivo de tornar o Brasil independente de Portugal. Apoiados em ideias de liberdade, o movimento organizou-se, mas foi debelado, pois sofreu delação. Com isso, os envolvidos foram punidos, mordazmente, pela coroa portuguesa. Em sua obra, Cecília Meireles recupera esses acontecimentos empregando componentes líricos, de modo que  seus versos narrativos, marcados pelo estilo inconfundível da autora,  dão voz a personalidades históricas e literárias que surgem sob efeito de intensa dramaticidade.

Nesse livro, não aparecem apenas essa figuras do universo sociopolítico envolvido com a Inconfidência. São mencionados outros nomes relevantes, como o de Chica da Silva, a mulher que foi escravizada, mas que, ao envolver-se com João Fernandes de Oliveira, conseguiu libertar-se e tornar-se lenda. Sua história tem sido retomada, com recorrência, no âmbito das reflexões sobre racismo e empoderamento feminino. Nesse sentido, leiamos o poema:  

ROMANCE XIV OU

DA CHICA DA SILVA

(Isso foi lá para os lados

do Tejuco, onde os diamantes

transbordavam do cascalho.)

Que andor se atavia

naquela varanda?

É a Chica da Silva:

A Chica-que-manda!

Cara cor da noite,

olhos de cor de estrela.

Vem gente de longe

para conhecê-la.

(Por baixo da cabeleira,

tinha a cabeça raspada

e até dizem que era feia.)

Vestida de tisso,

de raso e de Holanda,

– é a Chica da Silva:

A Chica-que-manda!

Escravas, mordomos,

seguem, como rio,

a dona do dono

do Serro do Frio.

(Doze negras em redor

– como as horas, nos relógios.

Ela, no meio, era o sol!)

Um rio que, altiva,

dirige e comanda

a Chica da Silva:

a Chica-que-manda.

Esplendem as pedras

por todos os lados:

são flechas em selvas

de leões marchetados.

(Diamantes eram, sem jaça,

por mais que muitos quisessem

dizer que eram pedras falsas.)

Mil luzeiros chispam,

à flexão mais branda

da Chica da Silva

da Chica-que-manda!

E curvam-se, humildes,

fidalgos farfantes,

à luz dessa incrível

festa de diamantes.

(Olhava para os reinóis

e chamava-os “marotinhos”!

Quem viu desprezo maior?)

Gira a noite, gira,

dourada ciranda

da Chica da Silva,

da Chica-que-manda.

E em tanque de assombro

veleja o navio

da dona do dono

do Serro do Frio.

(Dez homens o tripulavam,

para que a negra entendesse

como andam barcos nas águas.)

Aonde o leva a brisa

sobre a vela panda?

– À Chica da Silva:

à Chica-que-manda.

À vênus que afaga,

soberba e risonha,

as luzentes vagas

de Jequitinhonha.

(À Rainha de Sabá,

num vinhedo de diamantes

poder-se-ia comparar.)

Nem Santa Ifigênia,

toda em festa acesa,

brilha mais que a negra

na sua riqueza.

Contemplai, branquinhas,

na sua varanda,

a Chica da Silva,

a Chica-que-manda!

(Coisa igual nunca se viu.

Dom João Quinto, rei famoso,

não teve mulher assim!)

Neste romance, é retomada a figura de Chica da Silva, a ex-escravizada que, no imaginário, conquistou poder e fama em decorrência de seu envolvimento com um funcionário da corte portuguesa que lhe fazia todas as vontades — até as mais extravagantes. No poema, estão em pauta a beleza e a astúcia de uma mulher negra capaz de encontrar um homem branco e torná-lo submisso às suas vontades. Ela, portanto, detém poder e força, tornando-se, como fica evidente no poema, aquela que “manda” — causando o estranhamento e a inveja das pessoas do seu entorno.

Além desse poema, merece atenção a retomada de outra figura feminina: Bárbara Heliodora (também mencionada como Eliodora, como o prefere Cecília Meireles). Considerada a primeira poeta brasileira e uma heroína da Inconfidência Mineira, ela foi esposa de um dos inconfidentes e, tornando-se viúva, envolveu-se em intensa luta jurídica para ter direito à sua parte nos bens do marido que foi enviado, forçosamente, para Ambaca. Devotada à memória do marido amado, que morreu no exílio imposto pela coroa portuguesa, ela permaneceu viúva até sua morte. Leiamos, portanto, o texto que alude a essa heroína brasileira:

ROMANCE LXXX OU DO ENTERRO DE

BÁRBARA ELIODORA

Nove padres vão rezando

– e com que tristeza rezam! –

atrás de um pequeno vulto,

mirrado corpo, que levam

pela nave, além das grades

e ao pé do altar-mor enterram.

Dona Bárbara Eliodora,

tão altiva e tão cantada,

que foi Bueno e foi Silveira,

dama de tão alta casta

que em toda terra das Minas

a ninguém se comparara,

lá vai para a fria campa,

já sem nome, voz nem peso,

entre palavras latinas,

velas brancas, panos negros,

– lá vai para as longas praias

Do sobre-humano degredo.

Nove padres vão rezando…

(Dizei-me se ainda é preciso!…

Fundos calabouços frios

devoraram-lhe o marido.

Quatro punhais teve n’alma,

na sorte de cada filho.

E, conforme a cor da lua,

viram-na, exaltada e brava,

falar às paredes mudas

da casa desesperada,

invocar Reis e Rainhas,

clamar às pedras de Ambaca.)

Ela era a Estrela do Norte,

ela era Bárbara, a bela…

(Secava-lhe a tosse o peito,

queimava-lhe a febre a testa.)

Agora, deitam-na, exausta,

num simples colchão de terra.

Nove padres vão rezando

sobre seu pálido corpo.

E os vultos já se retiram,

e a pedra cobre-lhe o sono,

e os missais já estão fechados

e as velas secam seu choro.

Dona Bárbara Eliodora

toma vida noutros mundos.

Grita a amigos e parentes,

quer saber de seus defuntos:

ronda igrejas e presídios,

fala aos santos mais obscuros.

Transparente de água e lua,

velha poeira em sonho de asa,

Dona Bárbara Eliodora

move seu débil fantasma

entre o túmulo e a memória:

mariposa na vidraça.

Nove padres já rezaram.

Já vão longe, os nove padres.

Uma porta vai rodando,

vão rodando grossas chaves.

Fica o silêncio pensando,

nessa pedra, além das grades.

O poema faz menção às origens de Bárbara Heliodora (como fica evidente pela alusão aos nomes de sua família), alude à experiência da perda do marido amado, no contexto da Inconfidência, e aponta, com intensidade lírica, para sua morte (ela morreu de tuberculose) e seu sepultamento.

Para encerrar, Shirley Pinheiro (2021, n.p.), uma das pesquisadoras do Nordestinados a ler, no texto Cecília Meireles: o canto que encanta “morrendo de triste”, afirma: “Que a leitura da poesia de Cecília permita-nos aprender com as primaveras (bem como ela aprendeu) a deixarmo-nos cortar e a voltarmos sempre inteiros”. Fica nítido que estamos diante de uma autora cuja obra se configura como uma das maiores da Língua Portuguesa e, no Brasil, sua obra é tão notável quanto imprescindível: ninguém pode falar de poesia, neste país ou na comunidade lusófona, sem passar pela criação dessa escritora grandiosa demais para não ser lembrada.

Salve Cecília Meireles!

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega – Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1986.  

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM, 2013.

Sobre o autor:

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso é doutor, mestre, especialista e graduado em Letras. Publicou: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011), Romanceiro do Norte Juazeiro (2014), A Revolta de Antonina (2015), O Casarão sem Janelas (2018), O baile das assimetrias (2021/2022), Jornadas (2023), Romanceiros (2024) e Trilogia para o Cariri Cearense (2025). Recebeu: menção honrosa no XX Prêmio Ideal Clube de Poesia (2018); prêmio no VII Prêmio SESC de Contos; prêmio no I Prêmio Literário Demócrito Rocha–Categoria Poesia (2024); destaque no XXIV Prêmio Ideal Clube de Poesia (2024) e foi finalista do V Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura (2024). Foi um dos organizadores dos livros: Antologia Poética: Escritores do Cariri (2019) e Poemates Rosarvm (2019). Organizou os livros: Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem poesia: Manifesto Poético (2024) e Haicai-Cariri: antologia de haicai (2025).