Do signo de touro e suas construções: Hilda Hilst

Émerson Cardoso

Entre os impulsos de Áries e as tranquilidades de Touro, veio ao mundo Hilda Hilst. Uma artesã da palavra que vai às últimas consequências quando está em pauta visitar gêneros literários diversos, entregar-se aos amores e criar caminhos de expressividade literária para pisar com firmeza no mundo que ela construiu com paixão artística, sensibilidade profunda e genialidade estética.

Hilda Hilst nasceu em 21 de abril, no primeiro decanato do signo de Touro, que está relacionado, na mitologia grega, ao caso amoroso que se deu entre Zeus e Europa. Conforme uma das versões do mito, Zeus apaixonou-se por Europa, filha do rei da Fenícia, Agenor, e quando a moça deleitava as belezas da praia, o deus do Olimpo a raptou e a levou para Creta. Zeus disfarçou-se de touro para driblar a vigilância de Hera, sua ciumenta esposa, e com a princesa fenícia teve três filhos. Como forma de honrar a imagem do touro, Zeus o concedeu uma constelação que representa seus grandes chifres.

Touro é um signo feminino, sensível e esteta. Tende a ler as pessoas com profundidade, por isso é desconfiado. Ao mesmo tempo, quando confia em alguém, é leal e protetor e, por vezes, ingênuo. Além disso, costuma ser teimoso, prático, objetivo e excêntrico. Há três características marcantes desse signo: 1) sensorialidade, 2) amor à natureza, à intelectualidade, à beleza e às artes e 3) tranquilidade aparente, pois costuma ser agressivo quando levado aos limites de sua paciência. Touro costuma ser persistente (daí a fama de teimosia) e, por vezes, é dado à rebeldia quando se vê pressionado. Não é do tipo que aceita ordens com facilidade, porque tem seu tempo próprio para agir no mundo.

Por falar em rebeldia, Hilda Hilst é uma taurina típica, uma vez que foi capaz de gestos entre passionais e tresloucados que reverberaram em sua obra. Seu livro de poemas Presságio, publicado em 1950, foi sua obra de estreia, e já apontava para a expressividade confirmada ao longo de sua produção literária. Os muitos e intensos relacionamentos dela foram sempre motes perfeitos para a criação de versos. As angústias existenciais a instigaram a desenvolver reflexões sobre temas como: loucura, morte, amor, erotismo, misticismo, dentre outros. Esses temas são visitados por ela através de imagens metafóricas trabalhadas com maestria, também por um fluxo de consciência que, em vários aspectos, vai às últimas consequências na perscrutação da subjetividade das personagens. Elas, inclusive, são vivenciadas pela complexa teia das emoções que nem sempre conseguem ser comunicadas e, dessa forma, a incomunicabilidade leva-lhes, em vários momentos, à insanidade, à transgressão e à iconoclastia.

Na obra de Hilda Hilst, irrompem do caótico imagens repletas de símbolos e, com isso, a autora ganha em expressividade. Disso resulta, portanto, a configuração de textos cuja construção linguística mostra-se das mais bem realizadas da Literatura Brasileira. Consolidado seu nome como uma das grandes vozes de nossa literatura, mas insatisfeita com o desprezo da crítica e do mercado editorial, ela decide se rebelar.

 Depois de ampla produção literária nos gêneros lírico, dramático e narrativo (quando se consolida seu estilo marcante tanto no conteúdo quanto na forma), a autora, que legou à Literatura Brasileira textos artísticos considerados dos mais relevantes do século XX, decidiu transgredir regras.

Assim, Hilda Hilst promoveu um novo trajeto na sua produção literária. Como uma espécie de posição iconoclasta no campo literário, ela decidiu tratar de algo considerado de mau gosto e reprovável para olhares mais moralistas: o sexo explícito configurado por uma linguagem que faz concessões ao que é visto como “pornográfico” e grotesco. A propósito, a autora produz o que Mechthild Blumberg (2015) denomina “trilogia obscena”: 1) O caderno rosa de Lori Lamby (1990), 2) Contos d’escárnio/Textos grotescos e 3) Cartas de um sedutor.

Esses textos, representativos de sua fase iconoclasta, chocaram, incomodaram e causaram polêmicas. Com isso, ela alcançou seu objetivo: tornar sua obra lida, debatida e, como ela assume (taurina que é), comercializada. Não se trata apenas de vender, obviamente, mas de ser reconhecida de algum modo, de construir um trajeto de aceitação e de criar espaços de reflexão acerca do que é, de fato, consumido pelos leitores e pela crítica.

Dentre as obras criadas por Hilda Hilst, gostaria de mencionar as três que considero, por motivos pessoais, as mais significativas dentre as obras da autora: 1) Júbilo, memória, noviciado da paixão, 2) A obscena senhora D e 3) Rútilo nada.

Em Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974) encontramos exemplares grandiosos da produção poética de Hilda Hilst. Alguns críticos tendem a considerá-la uma obra de maturidade da autora, que está caracterizada pela temática amorosa, pela beleza imagética e pela expressividade da linguagem. Uma busca incessante do amor que nos remete à busca amorosa presente em textos difundidos amplamente no Ocidente, como o texto bíblico Cântico dos cânticos, ou como o mito dos andróginos apresentado por Aristófanes — um dos discursistas d’O banquete, de Platão. Apaixonado por essas poesias, Zeca Baleiro reuniu, em 2005, dez vozes femininas no disco Ode descontínua e remota para flauta e oboé – de Ariana a Dionísio, que foi muito bem-sucedido pela aceitação do público e da crítica.

No que diz respeito à prosa de Hilda Hilst, bastaria A obscena senhora D (1982) para que ela já fosse colocada no grupo de artistas de maior relevo em nossa literatura. A personagem feminina, singularizada pela velhice e pela loucura, posta-se em um vão de escada de modo que, nesse espaço simbólico, em fluxo de consciência contínuo, rememora o passado, dialoga com fantasmas interiores, expurga suas dores aos gritos, reflete sobre o metafísico e descobre-se solitária, fragmentada e perdida em ausências impossíveis de superação.

Uma das maiores obras do século XX, A obscena senhora D é um tratado sobre ausências que cria, na personagem evocada no título, um tecido no qual, em fluxo desordenado, a personagem se envolve. O que é real? O que é fruto da loucura ou do sofrimento ou da exasperação da personagem? Ela é, conforme o Porco-Menino afirma, “um susto que adquiriu compreensão”. Será que, de fato, é possível compreendê-la? Essa mulher é, também, derrelição, fragmentos da memória, tentativa de reencontrar o amor perdido e, sobretudo, solidão concretizada. Ser mulher, envelhecida, enlutada e destituída de sanidade mental a coloca em condição das mais doloridas existencialmente. A linguagem utilizada pela autora, devo dizer, é algo notável nessa obra. Tudo é reflexão, quebra de padrões, desordem e caos, porque a linguagem acompanha as reentrâncias da protagonista melancólica, solitária e louca. Essa é, definitivamente, uma das obras mais extraordinárias que eu li.

O eixo narrativo deRútilo nada se estabelece a partir do fato de que Lucius Kod se apaixona pelo namorado da filha, que se chama Lucas e produz poemas que trazem como tema recorrente a imagem de um muro. Lucius tem um pai controlador e de péssima índole que, ao descobrir a paixão dele por Lucas, resolve puni-lo. A punição se dá com um ato de violência realizado contra Lucas — dois homens o submetem a um estupro. Em decorrência do trauma, o rapaz comete suicídio deixando o amante desolado. No início da narrativa, a propósito, Lucius está no velório de Lucas. Essa é uma narrativa das mais expressivas dentre as criadas pela autora — o fluxo de consciência, a linguagem que transgride normatividades e as múltiplas camadas psicológicas das personagens confirmam isso.

Para concluir, considero Hilda Hilst uma autora que ainda não foi descoberta de todo no Brasil. Quando ela for alcançada, em sua maestria e complexidade, teremos um dos nomes mais potentes da Literatura Brasileira, da Literatura de Língua Portuguesa, da Literatura das Américas e, por que não dizer, da Literatura Universal. Forma e conteúdo, em sua obra, são construções de amplas possibilidades polissêmicas. O problema, como ela mencionou em uma entrevista, é que escrever, pensar e produzir literatura em Língua Portuguesa pode levar um artista a cair em fria sepultura. Hilda Hilst, para mim, nunca será sepultada, pois ela está no panteão das figuras de alto relevo que já são imortalizadas em vida, pois sua obra é profunda demais para sucumbir aos limites da língua.

Salve Hilda Hilst!

REFERÊNCIAS:

BLUMBERG, Mechthild. Sexualidade e riso: a trilogia obscena de Hilda Hilst. In: REGUERA, N. M. A.; BUSATO, S. (org.). Em torno de Hilda Hilst [on-line]. São Paulo: Editora UNESP, 2015.

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

HILST, Hilda. A obscena senhora D. In: Da prosa (volume 1). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

______. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

______. Rútilo nada. In: Da prosa (volume 1). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

sobre o autor:

Émerson é de Juazeiro do Norte/CE. Pesquisador, professor e escritor. São de sua autoria: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011)os cordéis A Beata Luzia vai à guerra (2011) e A artesã do chapéu ou pequena biografia de Dona Maria Raquel (2012); A Revolta de Antonina (2015), A dança das contundências (2017), O Casarão sem Janelas (2018) e  O baile das assimetrias (2021).