Luciana Bessa
Conheci Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz, pelos idos da década de noventa. A obra foi indicada para o vestibular da Universidade Federal do Ceará (UFC) e um grupo de alunos transformou-a em uma peça de teatro.
Diante de mim, uma mulher de compleição frágil, mas de coragem e uma valentia que não se adequavam em um corpo magro, um olhar melancólico e uma voz doce. Foi amor à primeira vista.
Pensei: preciso ler imediatamente essa obra. Contudo, a vida tem outras urgências, os professores outras indicações e a crítica especializada outras predileções. Acabei lendo “O Quinze”.
Só muito tempo depois consegui (re)encontrar Dôra, Doralina. É uma obra extensa, mas a linguagem fluída e envolvente faz o leitor se sentir “preso por vontade”, aludindo Camões, bardo português, que dá título a um dos prêmios mais importantes recebidos por Rachel de Queiroz.
Como em uma peça em três atos, conhecemos os três tempos que marcam a trajetória da protagonista, que se inicia como uma menina ingênua e dominada pela mãe, e termina uma mulher emancipada, que toma o lugar da própria mãe, após a morte desta.
Por meio de um discurso firme, subjetivo e dorido, afinal “doer, dói sempre” (p.3), no Livro de Senhora, ficamos sabendo que Dôra deseja ter uma filha, cujo nome seria Alegria. Mas “nem filha nem filho” (p. 3). O que tinha dentro dela foi retirado, porque estava morto. O tempo até passou, no entanto, o sentimento de “inveja das outras com seus filhos, netos e genros” (p. 3) cristalizou-se.
E como “nada volta mais” (p. 3), Dôra segue nos contando sobre sua relação ácida e distante com a mãe, Senhora, o fardo que é seu nome, Maria das Dores, a ausência do pai já falecido, o carinho por Xavinha, escrava da fazenda Soledade, a relação de proteção com Delmiro, jagunço ferido em combate na Coluna Prestes, a admiração pelo primo Laurindo. Com ele casou-se, teve um bebê que não vingou, descobriu a relação dele com a mãe e enviuvou aos vinte e dois anos de idade.
Após o enterro do marido, tirou o luto, se pudesse arrancaria a própria pele, vestiu um vestido azul, atravessou toda a Aroeiras, comprou passagem de trem e foi para a capital, Fortaleza.
Ao chegar lá, (Livro II – Companhia) começa a trabalhar na pensão de uma parenta distante, D. Loura. Conhece seu Brandini, empresário e diretor, da Companhia de Comédias e Burletas Brandini Filho e sua esposa, D. Estrela. Dôra, que sempre gostara de teatro, acaba entrando para a companhia de teatro ambulante e se torna Nely Sorel. Viajando de cidade em cidade, conhece o Brasil, especialmente o Norte, o Nordeste e uma parte do Sudeste. Na maioria das vezes, comia e dormia sob péssimas condições, viajava dias em uma boleia de caminhão, quase nunca recebia dinheiro, porque o lucro era pouco, mas estava feliz, pois pela primeira vez em sua vida sentiu que tinha uma família.
O amor veio, quando em Juazeiro, seu Brandini, após o almoço resolveu tomar uma cerveja em um bar. Havia uma mesa com três homens. Um deles, alto, bonito, moreno e antipático, se tornaria o seu grande amor, o homem que destruiria todas as suas convicções sobre o papel da mulher na sociedade. Por ele sentiu vontade de lavar e passar, coisas que nunca tinha feito para ela.
Finalmente, chegamos ao Livro do Comandante e conhecemos uma Dôra submissa, apaixonada, morando numa “casa de boneca” com panelas de alumínio só para dois, sendo sustentada por um marido contrabandista, que gostava de beber e, às vezes, podia ser tornar violento. Como há “amores da vida que não são pra vida”, o Comandante, que levava uma vida turbulenta e desregrada, contrai uma tuberculose e morre.
Seus objetos pessoais são guardados em uma mala e a chave é perdida. O resto ficou no coração e na pele de Dôra. “O círculo se fechou, a cobra mordeu o rabo: eu acabei voltando para a Soledade” (p. 236). Vestida de preto, Dôra atravessa toda a Aroeiras e veste a roupa de Senhora.
Fonte:
QUEIROZ, Rachel. Dôra, Doralina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.