É na terra que se adubam as roseiras

Alexandre Lucas

Faz silêncio entre os barulhos. Abre a boca como quem quer abocanhar o mundo — é só um bocejo de quem não dorme. Põe João Bosco pra cantar às três da manhã. Um homem cruza a praça a caminho do mercado, vai descarregar caminhões de frutas. O gato deixa marcas no cimento fresco — gato fresco. O Cristo de braços abertos continua iluminado na praça onde os pombos dormem.

Os galos cantam. Trégua pra João Bosco. Motores de carros lembram que a cidade não dorme toda. Três e quarenta e dois: toma goles de café, come uma banana, enxuga lágrimas, assoa o nariz.

Chama Nando Reis. Toca Alô. Os galos ainda cantam, agora com o latido dos cachorros. Tudo parece fora do lugar. O ventilador parado tem ar de querer falar. Os desenhos no quadro observam os movimentos; as malas têm cara de quem esconde segredos. O pífano dos Irmãos Aniceto some entre folhas de anotações esquecidas.

Faz barulho — o silêncio se estende pela madrugada. Nando Reis já canta Diz pra Mim. Faz caras e bocas da canção que não faz sentido pra vida real.

Quatro e treze. Vinho, lua e música: é a sugestão da amiga de Brasília. Brasília fica longe do povo e do instante.

Quatro e vinte. O despertador toca, mas ele já estava acordado desde as duas e vinte. Mais uma banana.

A soberania nacional é ameaçada por amarelos que se intitulam patriotas. A Inteligência Artificial vira terapia. Cartas suicidas são fabricadas na velocidade do capital. João Bosco volta com Querido Diário. Quatro e quarenta e nove. Uma senhora acende vela ao lado do santo, pede paz; o professor manda pelo celular um pedido para cassar um deputado brasileiro que vive nos EUA.

O sol ainda não aparece. Vai à varanda, vê rostos estampados na parede, ouve vozes distantes e tenta escutar o silêncio. Cospe na rua, volta, apaga as luzes, senta na cadeira, abre Graciliano — e é interrompido: batidas desesperadas no portão. Alguém quer entrar sem permissão.

Duas mulheres de blusa amarela caminham pela estrada, conversam alto. Outra passa com o filho — o mesmo destino: andar. Ninguém  caminha quando anda.

Os gatos começam a miar. Que os telhados aguentem. Os pombos parecem ainda dormir. Chegam cedo pra comer a ração dos gatos, mas ainda não chegaram.

Cinco e vinte e um. Hoje é dia de terapia. O papel higiênico está molhado. Toma outro gole de café, estica os braços, olha pro céu — mas sabe que é na terra que se adubam as roseiras.

Sobre o autor:

Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho.