Luciana Bessa
Romance de estreia da escritora sergipana Tina Correia – Essa Menina De Paris Paripiranga – é uma narrativa comovente de alguém que viveu muito, por isso, muito nos tem a contar.
A obra foi burilada por trinta anos (inicialmente tinha novecentas páginas), palavras da própria autora, já que ela precisava vencer a timidez e, além disso, o caminho até a publicação é árduo. Passado todo esse processo, o leitor tem em suas mãos um texto corrente, que nos faz rir e chorar com a mesma intensidade.
No auge dos seus oitenta anos, “Essa Menina”, ou melhor, Esperança, sente que sua memória está cada vez mais confusa, então resolve registrar, desde sua infância em Paripiranga, um bairro pobre e sem energia elétrica, até sua velhice na cidade Luz, Paris.
Contudo, antes de começar a compartilhar com o leitor os fatos de sua vida, alguns avisos da nossa protagonista, que sempre se achou uma testemunha: 1) Sua vida não merece um romance; 2) Promessa feita a si mesma de escrever um livro contando sua história, “uma vida de feijão com arroz”; 3) Escreveu o texto à mão, porque tinha mais fluência.
Depois desses comunicados, foi hora cavoucar o tacho da memória e deixar os fatos começaram a brotar da cabeça dessa Menina, que cedo desenvolveu “duas capacidades extraordinárias: a audição e a memória”. Em seguida, uma terceira: “o dom da invisibilidade”. Ou seja, estamos diante de uma garota esperta que tudo via e ouvia, e de adultos que não se davam conta da capacidade de uma criança em saber e entender tudo o que se passa ao seu redor. Nossos atos e nossas falas afetam muito mais os (as) pequeninos(as) do que supomos.
“Essa Menina” viveu uma vida pobre economicamente, mas rica de amor humano com seu pai, sua mãe, Vovó Grande, vovô, a velha Iandara, Das Dores, Diacuí e titia. Com esta, descobriu e questionou a existência de um Deus, que nunca viu ou ouviu; leu “As catilinárias”; conheceu o “Anjo da Boca Mole”; santos e a importância das plantas medicinais. Ainda com sua ajuda, fez a primeira comunhão, entrou no curso pedagógico, tornou-se normalista e organizou os cadernos conhecidos como “Questionário” e “Casarás?”. Por influência dela, começou a ler a Bíblia, afinal, “o ser humano precisa sempre acreditar em algo que o impulsione para o caminho do Bem. O resto é Mistério”. O presente acabou por se transformar em sua leitura diária e até a velhice. Esperança, costumava fazer anotações, comentários e discordâncias.
O pano de fundo desses acontecimentos são os grandes eventos políticos do final dos anos de 1930 a 1960. Nesse ínterim, ocorre o assassinato do “nosso pai”, Getúlio Vargas, a declaração da II Guerra Mundial e “a convocação de tio Bé como integrante da gloriosa expedição militar”, a chegada do “elefante branco”, geladeira, em sua casa e o aparecimento “nas farmácias da cidade de um produto destinado ao público feminino: O Modess”.
Ora testemunha, ora protagonista, “Essa Menina” – Esperança – cujo ideal sempre foi “repudiar a violência e qualquer sistema ditatorial que cerceie o direito à divergência e à livre expressão do pensamento”, permite-nos conhecer não só os fatos de sua vida, mas também, importantes acontecimentos históricos que marcaram o país (Ditadura) e o mundo (II Guerra Mundial). É ouvir a voz da oralidade por meio de um narrador que faz uso da voz de homens e mulheres (brancos, negros, indígenas) que não fogem à luta por mais que haja pedras em seus caminhos.