Shirley Pinheiro
“Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda”
Para ser sincera, não faço ideia de quando me encontrei com Clarice pela primeira vez. Se eu tinha oito ou dez anos, jamais poderei afirmar com certeza. Mas já que estou sendo sincera, nunca confiei muito na minha própria memória, tenho mania de esquecer onde guardei meus óculos, quem dirá um acontecimento tão antigo, de uma época em que eu ainda não tinha noção do valor desse encontro.
Mas com um pouco de esforço, consigo reviver algumas imagens: uma sala, com poucos alunos, uma aula de português e um texto não muito grande, nem muito difícil de entender. Era a história de uma menina apaixonada por livros e torturada por uma colega de classe, que inventava um milhão de desculpas para não lhe entregar a obra que havia prometido emprestado.
Achei uma história tão bonita. De certa forma, me identifiquei com a protagonista. Naquela época eu já era amante da leitura e devorava os livros simplesmente pelo prazer. Eu só não entendia muito aquele sentimento de querer ler uma obra específica, afinal, eu lia o que tinha e via pela frente.
Mas como muita coisa que se perdeu no tempo, esse primeiro encontro virou refém da minha frágil memória. Por muitos anos, eu “esqueci” o valor e todas as sensações (raiva, revolta e satisfação, no final) que aquele curto conto me proporcionou.
E, se nem toda memória pode ser resgatada com um simples gatilho, não foi esse o meu caso. A releitura do conto foi suficiente pra me inundar com as mesmíssimas sensações. Nesse reencontro, eu descobri que o nome daquele texto pelo qual me apaixonei (e dessa vez não esqueceria) era Felicidade Clandestina e sua autora era Clarice Lispector, provavelmente a escritora mais conhecida da Literatura Brasileira. Naquele dia, também descobri que ela não era brasileira de nascimento, era ucraniana, mas seu coração era nordestino de criação. Em suas palavras “naquela terra, literalmente, nunca pisei: fui carregada de colo”. De fato, Clarice Lispector era pernambucana.
Senhora das palavras, adestrou-se para ter a língua em seu poder e assim o fez. “A palavra é meu domínio”, dizia. E a relevância de suas obras, escritas décadas atrás, é a prova de seu poder. Quarenta e cinco anos depois de sua morte, o nome Clarice Lispector ainda figura nas principais listas de autores mais populares da literatura nacional.
E se a cada leitura é como encontrar-se com essa mulher tímida e ousada, muitos foram os nossos encontros. E com ela, novas companhias — Macabéa, Joana, G.H. E nessa mistura de mulheres, sentimentos e solidões cada encontro com Clarice é também um encontro comigo mesma, como se suas palavras, de alguma maneira, se adiantassem à minha existência e traduzissem as dores que eu viria a sentir décadas depois.
É fato que sem mim, Clarice Lispector continuaria sendo a grande Clarice Lispector. Mas quem seria eu sem ela? Sinceramente, quero nem pensar.
Viva Clarice!