Shirley Pinheiro
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”
(Machado Assis, 1881)
Nos dias de hoje, é quase improvável que um brasileiro minimamente letrado desconheça a relevância do escritor Machado de Assis para a Literatura Brasileira. Ainda que não tenha lido suas obras, é possível que reconheça facilmente nomes como Capitu, Brás Cubas ou Dom Casmurro. Tamanha importância legou ao carioca o título de maior escritor da Literatura Brasileira, honraria que se justifica ao observar a grandiosidade de seus feitos.
Nascido em 21 de junho de 1839, Joaquim Maria Machado de Assis adveio de família pobre. Descendente de escravizados, cresceu no Morro do Livramento, onde teve pouco acesso aos estudos, mas que, com persistência, lutou e conseguiu subir socialmente, tornou-se um conhecedor da intelectualidade e da cultura carioca. Machado de Assis foi romancista, cronista, dramaturgo, escreveu contos, folhetins e poemas, atuou como colaborador das revistas O Espelho, Semana Ilustrada e do Jornal das Famílias, foi censor teatral, ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial e primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Sempre com o apoio de sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais, que se mostrou a companheira ideal para ajudá-lo a superar as pedras que cruzaram pelo seu caminho. Quando tinha crises de epilepsia causadas pelo esgotamento por conta dos trabalhos que exercia, quem estava ao seu lado era Carolina,cuidando e revisando os seus escritos.
A Machado de Assis é atribuída a responsabilidade de introduzir o Realismo no Brasil, com a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que rompe com a linearidade da narração e inova na abordagem temática ao contar a história do “defunto-autor” a partir de sua morte — “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo […] Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!”.
Assim como o seu protagonista, Machado de Assis também teve uma história póstuma, contada, não por ele, mas pela sociedade que o descreveu nos moldes que ela considera aceitável. O que aconteceu foi um processo de embranquecimento do autor de traços afro-brasileiros. Machado de Assis, era mestiço e bisneto de escravizados e por anos foi representado por imagens nas quais aparecia com características de pessoas de pele branca. A reparação histórica se deu em 2018, com o surgimento de uma foto, na revista argentina Caras y Caretas, que mostrava Machado de pé num jardim, sendo visível sua pele retinta e traços faciais negros. O tema, que já era assunto de pautas sociais, ganhou força com a campanha Machado De Assis Real, a partir de então, a foto de Machado de Assis passou a ser oficialmente apresentada com a pele retina. Sobre isso, a professora e pesquisadora Magalhães Pinto, afirma que os esforços de retratar Machado como branco: “demonstram como a violência racial tem organizado até mesmo as políticas de memória sobre a história do país e de sua gente. O embranquecimento de Machado é produto da apropriação da sua memória por parte de homens que o queriam branco, para legitimar um projeto de país em que pessoas negras seriam apenas resquícios de um passado que se queria esconder e quiçá esquecer”.
O autor de A mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Quincas Borba (1899), foi membro fundador da nossa maior instituição literária, a Academia Brasileira de Letras (ABL), criada em 1897, nos moldes da Academia Francesa, com o objetivo de cultivar a língua e da literatura nacional, da qual foi o primeiro presidente, num mandato que durou mais de dez anos.
Considerado por muitos críticos como o maior nome da Literatura Brasileira, Machado de Assis é o dono de uma vasta produção literária. Criador de perfis femininos empoderados, que já se destacavam na época, seu legado atravessa gerações.