Jorge Nogueira
No vídeo, estávamos no sofá do apartamento: eu deitado no colo dele, olhos fechados, sorrindo. Ele cantava a música Redbone, do Childish Gambino, afinando a voz para tentar imitar os falsetes, enquanto tamborilava com os dedos nas minhas costas, as pernas movimentando-se ao ritmo da música. Revi o vídeo ao acordar no meio da noite. Sonhei que estava abraçado com ele na cama. Assisti à gravação dezenas de vezes após o término, durante meses e meses. A letra da música dizia que se você quer, você pode ter. Eu desejava voltar no tempo para aquele momento.
Quando não me achava trabalhando ou ocupado com os afazeres domésticos, ou durante isso, deixava a mente devanear. Se ligava a TV para assistir a um filme ou uma série, logo viajava pelo passado; no colo dele, dentro do seu abraço, nas brigas, no período que antecedeu o rompimento.
Tomei a decisão de dar um fim a tudo quando ele viajou para passar duas semanas com um cara em outra cidade. Andava tão saturado que falei que não me importava. Doía reconhecer que nossa relação foi um fracasso. Tudo bem ele transar com qualquer um, porém se envolver afetivamente era demais para mim. Com ele ainda em viagem, constatei que não queria esse tipo de relação, com um companheiro que me deixava sozinho para estar com outros homens. Claro que existiam outras razões menores para o término (desrespeito às regras que estabelecemos para a relação, conflito de valores, desgaste depois que decidimos morar juntos, ciúmes de minha parte).
Escrevi um texto expondo as razões pelas quais pretendia terminar e mandei para ele. Achava que escrevendo conseguiria me expressar com mais calma. No entanto, tudo saiu tão pesado como se estivéssemos discutindo frente a frente. Concluí: quando ele voltasse, conversaríamos abertamente.
Ao retornar, aparentou estar calmo, estranho. Tentei conversar. Ele retrucou dizendo que não tinha o que falar. Eu havia dito tudo na mensagem. Discutimos feio. Ele se mostrou magoado, sobretudo por eu afirmar que nunca me amou.
Dei um mês para que saísse do apartamento. Era tempo suficiente para ele arrumar outro lugar para morar. Se o clima se mantinha pesado com a gente ainda namorando, com o rompimento a coisa só piorou. Discutíamos com frequência, apesar de termos combinado manter a amizade. Consideramos existir uma diferença incontornável no modo de pensarmos um relacionamento. Até tentei, mas não consegui me adaptar ao tipo de relação que ele oferecia. Acreditava que minha natureza romântica não fosse compatível com um relacionamento aberto.
Uma semana e pouco após o término, do nada comecei a chorar na cama, soluçando alto. Esperava que ele ouvisse. Lá da sala, veio correndo, perguntando o que aconteceu. Quando viu o meu estado, me abraçou e deitou ao meu lado, dizendo: Calma, meu bem, tô aqui, calma… Chorei mais ainda e comecei a beijá-lo. Ele retribuiu, me beijando e me abraçando apertado.
No mesmo dia à noite, propus um meio-termo: estabelecer três meses fechado, três meses aberto, de forma que me sentisse mais à vontade na relação. Planejava tentar de novo, me arrependia de ter terminado, achava que tinha me precipitado. Ele disse que poderíamos tentar.
Estaria eu buscando um ideal romântico, um modelo heteronormativo de relacionamento? Seriam as relações um constante ajustar-se ao outro? Nossas diferenças suplantariam tudo o que nos conecta? Passei a madrugada remoendo questionamentos. Pela manhã, cheguei à conclusão de que não daria certo, que era definitivo e que precisava ser forte para cortar o vínculo.
Enfim, se mudou. Com a presença dele ainda aqui, no mesmo espaço que eu, mantinha-se a fantasia de que permanecíamos juntos. Com a mudança, a ausência dele se tornou uma tortura. Andava pelo apartamento me lembrando de onde ele costumava sentar, de ele de costas na cozinha lavando a louça, cantando quando tomava banho, no lado esquerdo da cama. Chorava quase toda noite até cair no sono, chamando-o baixinho, na esperança de que por alguma conexão cósmica ele pudesse me ouvir.
Voltei aos aplicativos de pegação para tentar preencher a ausência, buscando outros corpos que se revezavam quase todo dia na cama. Com três meses, conheci um cara super gente boa e caseiro como eu. Curtia músicas parecidas com as que eu ouvia, também amava filmes e séries… Começamos a nos ver três, quatro vezes na semana. Morava sozinho, como eu, e assim alternávamos as visitas. Mas assim que o negócio foi ficando sério, comecei a procurar defeitos nele. A mesma situação se repetiu com outros dois caras: quando notava que o fica se encaminhava para algo concreto, caía fora. E quem quer namorar alguém com saudades do ex? A psicóloga insistia que não daria certo com ninguém, visto que eu ainda continuava ligado a ele. Precisava liberá-lo e tirá-lo do pedestal.
Para ela, isso deveria ser muito fácil. Não para mim. Verificava as redes sociais dele. Olhava as fotos novas, os comentários, stories, quem curtia os posts. Tentava me afastar. Todavia, tudo me remetia a ele: músicas, cenas de filmes, vídeos do Gay Nerd ou do Bee40tona (canais do Youtube que ele adorava), o cheiro do perfume de algum amigo, o modo de falar espalhafatoso de um desconhecido num bar.
Joguei mais uma vez GRIS, um jogo lindo que ele me apresentou, que trata das fases da depressão e do luto. Entendi então que eu de fato vivenciava tudo aquilo. Afinal, o término é uma forma de morte. Me dei conta também que buscava outros caras semelhantes a ele e me frustrava ao perceber essas comparações.
Com a desculpa de ver o gato, que ele concordou em levar quando se mudou, pedia para ir à sua casa. Conversávamos, fazíamos amor. Ele ainda falava que me amava e eu dizia o mesmo. Manter a amizade se tornou um pretexto para continuarmos nos vendo.
Várias vezes me mandou mensagem à noite, perguntando se poderia me ver. Outras tantas fiz o mesmo. Mensagens apagadas antes do envio… Tentei diminuir cada vez mais as visitas, porém quando não era eu, era ele que me buscava, inventava de pedir a furadeira emprestada, livros… Comecei a mentir, declarando não estar em casa ou estar ocupado. As idas e vindas foram diminuindo, diminuindo… Os meses passavam e nos víamos cada vez menos.
Precisava seguir em frente, conhecer outros homens, parar de fantasiar voltas e viver novas paixões. Ainda que evitando os encontros, por vezes ia até à casa dele. Já conseguia fazer amor e ficar de boa. Isso é um grande passo!, comentou empolgada a terapeuta numa sessão. Entretanto, não queria uma amizade de foda. O que eu queria era o que sempre esperei durante o relacionamento: que ele compreendesse que o nosso amor era mais importante do que poder trepar com qualquer um quando bem quisesse. Me recusava a me dedicar a alguém que não renunciava a nada por mim. Como desejava que ele se arrependesse, voltasse atrás, confessasse que eu estava certo pelo menos uma vez, caralho!
Ainda continuava acompanhando tudo o que ele postava. Um dia, quando me preparava para dormir, vi que ele tinha um novo story.Ao abrir, me deparei com um boomerang com ele e um cara. Seria o novo namorado? De forma inevitável, me equiparei com o outro. E nessas comparações, para mim, eu sempre saía perdendo. Chorei na cama, tentei dormir. O sono não veio. Dias depois o vi com o mesmo cara no bar que ele costumava ir, e que eu frequentava também na esperança de vê-lo, numa atitude masoquista que naquele momento não me dava conta. Depois de cumprimentá-los, voltei para a mesa em que me encontrava com os amigos e mais uma vez chorei.
Bloqueei ele nas redes sociais, para evitar ficar stalkeando. Excluí fotos e vídeos do celular. Apaguei todas as mensagens trocadas. Lembranças fugidias… Quando começava a lembrar dele, cortava na hora, pensava rápido em outras coisas, ia fazer algo que exigisse concentração. Sabia que precisava ter autocontrole e muita paciência. Se algum amigo comentava que o viu em algum barzinho, academia ou shopping, eu ficava bem. E quando o encontrei outras vezes, sentia quase como se tivesse esbarrado com qualquer outra pessoa. Quase.
A última vez que nos reencontramos foi na semana passada. Havia um mês e meio ou dois que não nos víamos. Ele veio ao meu apartamento deixar um casaco que esqueci com ele. Não sei por quê, assim que ele chegou, lembrei do vídeo e daquele dia. Se tivemos pelo menos um momento que queríamos eterno, a relação valeu a pena?
Sentados no sofá, enquanto fumávamos um baseado e assistíamos a clipes de músicas que estava ouvindo e ansiava por mostrar a ele, passei a mão pela sua perna peluda, acariciando-a. Ele ficou tenso, duro. Tentei beijá-lo. Os lábios negaram os meus. Questionado, respondeu que não gostava de reviver ciclos. Argumentei que por mim tudo bem. Insisti até que ele cedeu.
Começou a chover e deduzi que ele teria que esperar a chuva passar. Veio de moto. Ainda soltei um: Poxa, que chato, embora por dentro estivesse sorrindo. Levei-o pela mão para o quarto. Continuamos conversando na cama, elevando o tom da voz para tentar encobrir o som da chuva que engrossava cada vez mais. Só então reparei que fazia quase um ano do término.
Perguntei se apareceu alguém especial. Admitiu que sim, que estava saindo com o cara que vi no bar. Contudo, o outro era monogâmico e por isso resolveram ficar só na amizade. Apesar de se verem com frequência. Ele acreditava que seria difícil conhecer alguém que quisesse um relacionamento aberto. Estranhei. Tinha a impressão de que isso era cada vez mais comum.
Nos abraçamos deitados, um de frente para o outro, rostos quase colados, nos tocando suavemente. Nos encaramos por longos minutos, tal qual fazíamos no passado; como se uma falha no espaço-tempo tivesse possibilitado um maravilhoso lapso temporal. E no clarão de um raio que iluminou todo o ambiente, me vi refletido na sua íris.