Shirley Pinheiro*
“Só por hoje eu não quero mais chorar
Só por hoje eu espero conseguir
Aceitar o que passou o que virá
Só por hoje vou me lembrar que sou feliz
Hoje já sei que sou tudo que preciso ser
Não preciso me desculpar e nem te convencer
O mundo é radical
Não sei onde estou indo
Só sei que não estou perdido
Aprendi a viver um dia de cada vez”
(Legião Urbana, 1993)
Então é Natal… Chegou o fatídico período em que gratidão e melancolia andam agarradinhas, como um casal apocalíptico que chega devastando os corações (e estômagos) solitários e depressivos. A época em que tudo parece feliz demais, e a ansiedade transborda, ao mesmo tempo em que os ciclos se encerram e as memórias ficam mais saudosas e tristes. Poderia um ano, dividido em 366 dias ter sido o seu pior e melhor ano, ou seria um paradoxo muito barroco, em contraposição ao elogio de “pós-moderna” que recebi de um professor, alguns anos atrás?
O fato é que cá estou eu, de novo, sofrendo por um período de tempo que se repete religiosamente há 26 anos. Mas, diferente dos outros, que se resumiriam numa só palavra (insegurança), neste ano, eu adicionaria a palavra “exaustão” à pequena listinha de tormentas natalinas. No entanto, como nem só de reclamações sobrevive um coração melancólico, outra palavra que define esse final de ano é “realização”.
Posso dizer, sem peso na consciência, que 2024 foi um ano revolucionário na vida desta que vos escreve. Se no ano anterior eu estava aterrorizada pelas mudanças que chegariam, hoje sou grata por muitas delas.
A primeira é a que define toda a minha trajetória de vida, que são os frutos do meu esforço acadêmico. Sei que numa sociedade justa eu estaria sentada à beira mar, tomando vinho, curtindo a vibe e sem ligar pra nada, já que eu seria uma herdeira milionária (espero que alguma versão minha no “multiverso da loucura” esteja desfrutando desse privilégio), mas, apesar dos muitos pesares, finalmente atuar na profissão a qual me dediquei durante a minha graduação inteira é absurdamente gratificante. Esse ano, conheci crianças e adolescentes que espremeram meu juízo até não até não sobrar uma gota de sanidade, mas diante da incerteza de encontrá-los novamente em 2025, eu os colocaria (não todos) num potinho e os guardaria no meu coração.
Falando em graduação, finalmente colei grau e, tal qual Luiz Gonzaga, sou diplomada! Mas, para orgulho de uns, desgosto de outros, julgamento de alguns e indiferença de muitos, eu continuo na URCA, dessa vez como graduanda de História. E, sendo bem sincera, pra alguém tão indecisa quanto eu, celebro a certeza desse caminho, escolhido no exato momento em que saí da última aula da disciplina de Ceará e Cariri II, ainda como estudante de Letras (saudades). Mas ser aluna do Departamento de História tem sido uma das coisas mais prazerosas em minha rotina, desde que a frase de Fagner — “nem aquilo a que me entrego, já me dá contentamento” — se manifestou em mim como “realista demais”. (Saudações aos novos amigos e colegas, e o nosso ódio conjunto aos mesmos professores e discordâncias aos que adoramos).
Esse ano pouco escrevi em linhas e parágrafos, o que é uma pena. Mas tive oportunidades de escrever novos capítulos em minha trajetória. Pode-se dizer que as mudanças vieram a galope. Fisicamente, raspei o cabelo; deixei crescer; pintei de laranja, rosa, roxo; fiz tatuagem; troquei de óculos; eu até pintei as unhas duas vezes esse ano (como eu disse, revolucionário).
No entanto, a maior mudança foi interna. Esse ano consegui desenvolver um pouquinho de confiança, sobretudo, em mim mesma. Fazer coisas sozinhas se tornou uma necessidade, quando me vi perdendo oportunidades de novas memórias por falta de companhia para determinados desejos. Mas esse ano, transformei essa necessidade em virtude.
Morar sozinha, certamente foi uma das maiores realizações pessoais deste ano. Mas eu diria que o momento mais especial que vivi nesses 12 meses que se passaram foi a noite de 16 de novembro, em que pude experienciar ao vivo a existência daquela que, há um tempo, venho chamando de Deus. Sim, estou falando do show de Maria Bethânia e Caetano Veloso, em Fortaleza. Ainda hoje me parece um surto que eu tenha despencado, pela primeira vez, completamente sozinha, morrendo de medo e cheia de incertezas, de Crato à Fortaleza (mais de 500 km de distância), pra ver Maria Bethânia. Posso dizer que eu transcendi. Existe uma Shirley antes e depois daquela noite. Não só pelo encontro com “Deus”, mas pelas transformações que aquela viagem me causou. Eu agora digo que sou Pipa, carregada pelos ventos, mas sempre com um local para onde retornar.
Ainda em 2024, fiz valer a minha liberdade. Fui a shows de Chico César, Alceu Valença e Ney Matogrosso. E tive a felicidade de conhecer pessoas incríveis, que me fazem rir, que não medem distâncias para acolher e se mostrarem presentes. Pessoas que se somaram às que já tinham e tornaram esse ano muito mais tolerável.
É triste encerrar ciclos, sobretudo aqueles que foram felizes e memoráveis. Mas eu estaria sendo hipócrita se negasse o sentimento aterrorizante que esses fins acarretam; o desejo irracional de tentar prolongá-los e o medo de criar expectativas. Terminar 2024 tem se manifestado com um abrir mão de conquistas jamais imagináveis, ao mesmo tempo, parece uma superação das coisas que não se consegue pronunciar. Um ano revolucionário, paradoxo e que superou as expectativas (ou falta delas).
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
*Graduada em Letras pela Universidade Regional do Cariri.