Ludimilla Barreira*
Basta fechar os olhos, lembro de quando tinha 11 anos, escondida no topo do pé de seriguela acompanhando os movimentos delicados das mãos do meu avô esfolando o couro do carneiro morto. Aquele bicho preto altivo, que no dia anterior disputava marradas e levantava poeira ao arrastar a pata, agora estava ali, com os olhos esbugalhados e o sangue escorrendo do pescoço na terra que absorvia a vida.
Sem entender a solenidade das ações, acompanhava com admiração e medo enquanto arrancavam a pele e a cabeça do animal, restando o corpo aberto, dividido o peso entre dois galhos. Com os olhos da inocência, achava que ali se encenava apenas um espetáculo pavoroso. Relembrando o momento, percebo que eu não era capaz de imaginar o que enfrentaria no futuro. Hoje, entendo que a vida que corre em mim é a doação de outra existência. Que não há fim, apenas um ciclo contínuo.
Espantada e distraída, deixei que percebessem a minha presença. Meu avô reprovou a desobediência e mandou que descesse de imediato. Quando cheguei ao último galho, saltei para o chão e deixei tocar meus pés no filete de sangue que escorria pelo terreiro. Sai correndo pelo mato, pensando no destino do carneiro que serviria de almoço, mas que, horas antes, corria e lutava para sobreviver.
Sentei-me ofegante no chão, aproveitando a sombra de um cajueiro carregado. Vi outros animais: alguns descansavam à sombra, enquanto outros se alimentavam. Percebi que todos, inclusive eu, tiravam daquele lugar a substância que os mantinha, em um ciclo no qual a terra era a única testemunha, pois ela pereniza a vida, mesmo que seja através da morte.
Voltei para casa arredia, sem coragem de comer o guisado, mas a fome não deixava escolha. Olhei para a mesa e senti uma gastura nos pés ainda impregnados de areia, sumo de caju e uma nódoa vermelha. Esfreguei freneticamente, como se tentasse apagar a cena. Depois de alguns anos, percebo que aquela era a consagração de uma união.
Hoje, ainda sinto uma gastura como nos tempos de menina, mas não quero encerrá-la. Pois, quando piso firme no mundo, sei que tenho uma casa e sinto que aquele sangue fez crescer as raízes que me conectam à terra que me formou e carrega a memória de onde vim e de quem sou. Não preciso que me digam de onde eu venho, eu fecho os olhos e sinto.
Sobre a autora:
Ludimilla Barreira
*Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.