Shirley Pinheiro
Em 1949, Simone de Beauvoir concluiu que as concepções acerca dos indivíduos são construídas social e culturalmente, não se nasce com elas, mas se aprende através da socialização, logo, “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Mas o que faz de uma mulher uma Mulher? Para Shirley Dayanna, protagonista do cordel O Milagre Travesthriller: A História Da Travesti Que (Com Fé) Engravidou, escrito pela advogada (de mulheres, travestis, pessoas trans e homossexuais), professora e cordelista Salete Maria, o que a preocupa e faz com que se sinta inadequada é a impossibilidade de aumentar sua família, “como faz todo casal”. O que a impede de realizar esse desejo? Shirley Dayanna, “orgulho da causa gay”, é uma travesti.
É então que começa a saga de transgressão de Shirley Dayanna. Habitante do Juazeiro do Norte (Juá City), terra do “Padim Ciço Romão Batista”, berço das romarias e da religiosidade do Cariri cearense, nossa heroína, como muitos de seus conterrâneos, entoa o louvor católico na subida ao Horto onde está localizada a estátua do Padre Cícero, símbolo religioso na região. Shirley se destaca a partir das marcas identitárias que carrega em seu corpo e em sua vestimenta – “De baby-look brilhosa/ E mini-saia rendada/ Com sua bota estilosa/ E a cabeleira dourada”.
Shirley Dayanna deseja a todo custo engravidar e se agarra às crenças católicas às quais foi educada, na tentativa de fazer o milagre acontecer. Primeiro apela para Nossa Senhora da Conceição, “sua anja… uma santa que manja/ do tema concepção!”. Eis a primeira decepção de Shirley, nada lhe aconteceu. Mas como toda boa sertaneja, ela não é de desistir e num lapso delirante, teve um rompante de que poderia engravidar, tal qual a virgem Maria, que concebeu Jesus Cristo por meio de intervenção divina. Shirley intercede ao Senhor Todo Poderoso, pede que Ele lhe envie um sinal “Um ente angelical/ Chamado de Gabriel /Gerente dalgum motel”, em referência ao anjo que anunciou a gravidez da santa Maria.
“Eu preciso ter um filho
Para me realizar
Já fui rainha do milho
E também miss Ceará
Já desfilei na fanfarra
Agora chega de farra
Eu quero é amamentar!”
As respostas para as preces de Shirley vinham de uma voz estridente, que “repetia, renitente:/ Não me tente, por favor!”. Mas a travesti insistia, e apelava — “Eu também tenho direito!/ Não fiz catecismo em vão!/ Decorei todo o preceito!/ Fui crismada, batizada!/ Hoje sou mulher casada!/ Qual é mesmo o meu defeito?”. Mas convencer Deus era uma tarefa impossível (para uma travesti) — “Assim não dá…/ Você burlou a história/ Pra me desmoralizar/ Quem já viu um travesti/ Pensar que pode parir/ Para Eu abençoar?”.
A partir da negativa do “Deus do céu”, Shirley desiste da religiosidade e passa a recorrer a outras entidades sociais: o juiz, a parteira, os movimentos LGBT e Feminista, nenhum capaz (ou disposto) a atender (ou auxiliar) seu desejo de engravidar. “Minha Santa Lady Gaga!/ Virgem Madonna, oh não!/ Beyoncé, oh minha fada!/ Não rogo por Deus em vão!/ Shirley Dayanna, amada/ Me tire dessa parada/ Não me meta em confusão!”.
A protagonista, que não pensa em desistir, encontra a solução para seu “problema” no livro de magia das beatas moribundas “Que no século dezenove/ Praticavam meia-nove/ Dentro duma catatumba…Eram cinco travestis/ Que viviam no sertão/ E viraram colibris/ Depois duma maldição/ Pois com o poder da mente/ Foram mães precocemente/ Hoje são assombração”. Shirley Dayanna se apossa do livro e vê que o poder do inconsciente é o que vai lhe permitir engravidar. E assim o faz — “contou até dez/ Um: estou engravidada!/ Dois: Isto é fenomenal!/ Três: Me sinto iluminada!/ Quatro: Hoje é natal!/ Cinco: Viva a putaria!/ Seis: Tô cheia de energia!/ Sete: Benedito pau!/ Oito: Tudo é permitido!/ Nove: Eu quero voar!/ Dez! Ouviu-se um estampido/ E algo estranho no ar/ Shirley estava flutuando/ Sobre a cidade pairando/ E a multidão a olhar”.
Logo a história da gravidez de Shirley Dayanna se espalhou, “todo mundo interessado/ no novo mito gerado/ nesta terra milagreira”, até mesmo Barack Obama lhe mandou um telegrama. E assim como Geni, da canção de Chico Buarque, Shirley viu-se adorada pelo povo de sua cidade.
O Milagre Travesthriller: A História Da Travesti Que (Com Fé) Engravidou foi encomendado em 2010, pelo cineasta Orlando Pereira, para transformá-lo em curta-metragem (que aconteceu em 2014). Nele, Salete Maria subverte as imagens dos personagens religiosos, bem como a natureza do seu milagre, se valendo do humor e do mistério para narrar a saga de Shirley Dayanna.
REFERÊNCIAS:
SILVA, Salete Maria da. O MILAGRE TRAVESTHRILLER: A HISTÓRIA DA TRAVESTI QUE (COM FÉ) ENGRAVIDOU. Cordelirando, 2 de julho de 2010. Disponível em: <http://cordelirando.blogspot.com/2010/07/o-milagre-travesthriller-historia-da.html>