Ludimilla Barreira*
Maria Valéria Rezende conhece o poder da palavra e sabe como usá-la. Tive o prazer de conhecer sua narrativa através dos livros Cartas a Rainha Louca e O voo da Guará Vermelha. Em ambos, ela deixa claro que a escrita pode nos proporcionar a oportunidade de ser um e, ao mesmo tempo, vários, pois deixa ao leitor a difícil ou até prazerosa tarefa de extrair todas as camadas colocadas no texto. Como disse o poeta Fernando Pessoa: “Desejo ser criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade.” Pois bem, Maria Valéria nos presenteia com três grandes mitos nessas duas narrativas.
Com Maria Isabel, narradora-personagem de Cartas a Rainha Louca, a autora nos proporciona uma viagem ao Brasil colonial do século XVIII sob uma perspectiva diferente do convencional. Ela não direciona nosso olhar para os personagens óbvios, mas para alguém invisibilizado. Uma mulher branca, sem valor comercial e desgraçada pela lascívia de um jovem irresponsável. Não havia lugar para Maria Isabel, pois, sem família, herança e um patriarca que a protegesse, precisou vestir-se de homem para sobreviver através da única fortuna que por sorte acumulou enquanto jovem: a perspicácia para escrever.
Embarcamos nas desventuras de Maria Isabel, às vezes Joaquim, nas cartas enviadas a Maria I, a Rainha Louca. Mas, engana-se quem pensa que ao longo da narrativa teremos apenas um romance. Na verdade, de forma sutil, a autora nos impõe a indignação em torno das questões sociais, como a impossibilidade da protagonista ser livre, pois era cativa de todas as limitações relacionadas ao seu gênero. Isso se assemelha ao que ainda sofremos atualmente, quando se espera da mulher a ascensão social através do casamento e se agravam as desigualdades ao considerarmos a interseccionalidade, levando em conta raça e classe.
Com milhares de questionamentos, parti para a leitura de O Voo da Guará Vermelha, onde ela nos apresenta Irene e Rosálio, dois personagens que escondem suas profundidades no cotidiano simples e, aparentemente, desinteressante.
Nos capítulos que recebem títulos que representam junções de cores, temos no primeiro o título “cinzento e encarnado”. O cinza representa Rosálio, um homem que tem “fome de palavra” e o sonho de ler e escrever. Por isso, já andou por muitos lugares. Antes de encontrar Irene, seu mundo estava revestido de “cinzenta tristeza”, mas quando eles se encontram, ele vê “todas as cores” que um encontro de destinos e almas pode proporcionar. Irene, uma mulher com olhos de “súplica e esperança”, pega o rapaz pela mão e, mesmo que suas necessidades financeiras não sejam atendidas, seu amante entrega como paga o seu único tesouro: a palavra. E, por causa dela, ficam juntos.
Nas páginas seguintes, conhecemos a vida de Irene, uma vítima do próprio destino, retratada como uma mulher frágil e doente em decorrência da vida que a sociedade lhe impôs. Ela tinha um filho que morava com uma senhora, ambos apresentados sem nome, apenas reforçando a ideia de apagamento e de uma existência insignificante. Testemunhamos a luta da personagem para conseguir levar dinheiro e dignidade para o rebento, mesmo que para isso fosse necessário se submeter à vilania de sua clientela. Ela tem vontade de viver, mas tem consciência de que seu sopro escapa um pouco mais a cada dia.
Com Rosálio, um resistente, testemunhamos sua trajetória que, como tantas outras pessoas, enfrentou percalços para ter um nome e documentos de identificação. Além disso, passou por trabalhos em condições análogas à escravidão e outras tantas agruras, enquanto tudo que ele mais queria era aprender a ler e escrever para entender o sentido do mundo e libertar todos os seus sentimentos aprisionados.
A união dos dois nos mostra o quanto há riqueza na partilha de corações sinceros. Nessa troca de esperança, carinho e cuidado, assistimos ao desenrolar de duas vidas que, na simplicidade dos dias, nos mostraram o privilégio de se dar e receber o outro.
Felizmente, ainda tenho mais um livro de Maria Valéria Rezende para ler. Ainda quero desvendar o mistério do sagui (fica aqui a semente da curiosidade) e conhecer sua outra forma de nos mostrar o quanto a palavra liberta, une e cura. Assim como fez com Maria Isabel, Rosálio e Irene.
Sobre a autora:
Ludimilla Barreira
*Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.