Ludimilla Barreira*
Não sei quando as fendas se pronunciam e formam os grandes abismos, mas há um momento em que algo se rompe de tal forma que os espaços abertos não permitem que possamos nos reconectar. Podemos construir pontes, mas estas nunca serão tão estáveis e seguras quanto a solidez da terra firme.
Conexões físicas nos aproximam, mas não nos dão a certeza do preenchimento, nem da troca constante que é responsável por fornecer energia suficiente para nos manter confluindo.
Quando me refiro às profundezas criadas pelas fendas, não quero mencionar apenas aquelas que surgem além das nossas margens, mas também as que dilatam dentro de nós. Por exemplo: quantos abismos deixei surgir entre a pessoa que me tornei e aquela que um dia almejei ser? Ou, até mesmo, quantas outras tantas depressões precisei formar para permanecer sendo quem sou? Mesmo que ficasse ilhada na certeza da minha vontade.
Por outro lado, se refletirmos através das palavras atribuídas a Heráclito de Éfeso: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois, quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.” Jamais conseguiremos unir dois lados que um dia se separaram ou preencher um vazio com o mesmo conteúdo que dele foi retirado.
Não há volta, mas há recomeço. Não seremos os mesmos; por esse motivo, precisaremos aprender a ser outros.
Com essas palavras, quero apresentar a vocês o livro de uma escritora colombiana que sempre me leva a refletir a vida através de perspectivas pouco usuais. Conheci Pilar Quintana através de A Cachorra, em 2020. Fiquei hipnotizada com os sentimentos contraditórios que a personagem Damaris demonstra sobre a maternidade. Por isso, passei um longo período com ela nos meus pensamentos, refletindo sobre como um livro tão curto e que trata de uma história tão cotidiana poderia se opor, de modo eficiente e, ao mesmo tempo, simples, aos padrões maternais.
Finalmente, nosso reencontro se deu no finalzinho de 2024, quando percebi que tinha na minha biblioteca o livro Os Abismos, lançado em 2021, que, no mesmo ano, prestigiou a autora com o Prêmio Alfaguara de Romance. Não costumava me ater a premiações, mas, como sei que a vida de uma mulher no mundo literário não é das mais fáceis, aprendi a valorizar as circunstâncias que nos colocam em evidência.
Em Os Abismos, conheci a menina Claudia, que conta um momento da sua infância, por volta dos oito anos de idade, aproximadamente nos anos 1990, na cidade de Cali, Colômbia. Ela tem uma mãe com o mesmo nome, que, possivelmente, parecia muito insatisfeita com sua monótona vida doméstica. Seu pai, de idade mais avançada que a esposa, é um homem dedicado ao trabalho e de poucas palavras. Além disso, conhecemos outros personagens que marcam esse momento de sua vida, como a boneca Paulina e Rebeca, uma mulher que desaparecera.
Com sensível observação de Claudia, somos levamos a refletir sobre a solidão feminina e os abismos aos quais recuamos para atender as necessidades sociais, ao invés de nos jogarmos rumo ao desconhecido.
Pela distante relação entre a menina e sua mãe, percebemos as dificuldades que surgem dentro de uma maternidade forçada pelas circunstâncias sociais, em que uma mulher mesmo anunciando ao pai o seu desejo de progredir nos estudos através do nível superior, é direcionada obrigatoriamente a um casamento conveniente.
A peculiar percepção de Claudia em captar as situações que a rodeiam, nos deixa fascinados. Pilar Quintana é excepcional ao demonstrar a sua em tornar uma personagem infantil com características que nos permitem uma profunda identificação, mas ao mesmo tempo nos conecta com sentimentos complexos da vida adulta. Ou será, na verdade, nunca deixamos de ser verdadeiramente crianças?
Sobre a autora:
Ludimilla Barreira
*Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.