Dina Melo*
A desconexão com nosso interior revela-se, quando sentimos que perdemos o tempo certo das coisas, sempre atrasadas, em falta, sem ritmo. Quando experienciamos uma raiva crônica.
Raiva crônica é aquela que não passa, que faz morada no nosso corpo, aninha-se nos esconderijos mais profundos, entrelaça-se em nosso sangue, em nossos ossos. Uma raiva persistente, que nos fere e está sempre à espreita para surgir repentina e violenta quando uma coisa qualquer nos desagrada, foge do nosso planejamento, contraria nossa lista fixa.
Podemos sentir tamanha raiva quando a perda de um sonho ou um acontecimento indesejável muda de forma irremediável o rumo da nossa vida e nos faz andar por caminhos de todo diferentes daqueles traçados no auge das nossas esperanças.
Mas antes da raiva se instalar, sentimos frustração, mágoa, aquele choro fininho da alma que insiste em derramar, que não conseguimos estancar nem secar, que vai se espraiando no nosso ser. E tudo vai azedando, amargando e vamos ficando ferozes. Andamos em círculo e mordemos nosso rabo. Rosnamos para as pessoas próximas. Atacamos. Nada consegue amenizar essa raiva e, no entanto, na maioria das vezes, não nos damos conta dela.
Ficamos enlaçadas naquela via que não se realizou, porque, quando os ladrilhos do caminho planejado começaram a se desfazer e ele ficou suspenso no ar, nos agarramos desesperadamente e, mesmo com as mãos feridas, não conseguimos soltá-lo.
E assim seguimos, abraçadas com o punhal que nos sangra. E o sangue mancha nossa roupa, nossa alma, machuca quem divide conosco a vida, quem está apenas de passagem. É possível arrancar esse punhal dos nossos braços? É possível secar o rastro de sangue que deixamos no caminho? Para a primeira pergunta, respondo que sim, mas refazer o passado, ah, seres humanos que somos! limitados pelo tempo, não conseguiremos retornar pelas mesmas trilhas, apanhar no ar as palavras soltas, desfazer os gestos.
A raiva nos venda para as possibilidades e essa cegueira nos aprisiona, nos tranca em caixas cujas chaves jogamos fora. A raiva nos lança em masmorras escuras onde ficamos sem alimento, definhando na lama densa na qual afundamos os pés, nossas asas sem força suficiente para nos erguer. E, assim, perdemos mais sonhos. Vemos caminhos que passam, mas as janelas têm grades, aqueles caminhos são de outros, os nossos perderam-se para sempre. Um monstro vigia nossa porta.
Mas, um dia, desfaz-se o feitiço da cegueira. Subitamente duvidamos. Não, não estávamos sob feitiço, era real e não, não voltamos a enxergar, estivemos vendo tudo o tempo todo. Nossos olhos tão acostumados à escuridão não conseguem reconhecer o brilho da saída.
Como que despertando de um longo sono, a luz, ainda que fraca e tênue, queima nossos olhos, temos medo. Mas se persistirmos em abri-los, veremos pequenos raios aqui e ali, veremos que outros sonhos podem surgir, que podemos fazer as pazes com essa parte dolorida do nosso passado, que outras histórias lindas e significativas poderão ser vividas, com outros enredos, outros personagens, outras paisagens.
Sobre a autora:
Dina Melo
*Amante das árvores, das nuvens, do vento, das águas e do som das palavras. Pés no chão, cabeça nas estrelas, sol em Touro e lua em Gêmeos. Herdou a força e a ligação com a Terra das suas ancestrais Tabajaras da Serra da Ibiapaba. Estudou Direito na UFC e é servidora do TRT Ceará.