Shirley Pinheiro *
“A sorte de ter sido quem sou, de estar onde estou, não é nada se comparada ao meu maior gol: sim, acho que fiz um monte de gente feliz”
Rita Lee: uma autobiografia (2016)
Algumas semanas atrás, sozinha numa madrugada de sábado, assisti, encantada, à homenagem do apresentador Sérgio Groisman à cantora Rita Lee, em seu programa Altas Horas. A cada depoimento dado pelos amigos de Rita, a emoção se exibia, transformando meus olhos numa piscina, sob ameaça de transbordar, e, a cada música cantada, minha pele arrepiava, enquanto, com minha “voz chata e renitente”, como diria um antigo cantor de rock, eu cantava, em frente à TV. Ao fim do programa, ainda emocionada e com certo receio de ser flagrada ali, exposta pelas sensações que aquela cantora me causava, questionei em silêncio porque eu ficava assim, tão emotiva. A resposta foi instantânea: sou sensível à arte.
Hoje, como se o universo estivesse tentando adiar o inadiável, demorei mais do que o normal para acordar, e mais ainda para ligar o celular. Já era quase meio-dia, quando percebi que estava fazendo o almoço sem música, foi quando conectei o telefone à internet e recebi a notícia que eu não queria: mais um ícone da música nacional havia nos deixado, desta vez, Rita Lee, a rainha do rock brasileiro. O choque foi inevitável, a tristeza também e a falta de uma pessoa que eu sequer conhecia pessoalmente, já começava a se formar (destaco aqui, mais uma prova do poder da arte, aproximar pessoas).
Mas também, quem não se sentiria próxima da icônica Rita Lee, tendo crescido com suas canções embalando os momentos tristes e felizes, sozinha ou acompanhada e, principalmente, inspirada pela sua história de vida transgressora e revolucionária, uma voz que impulsionou e ainda impulsiona as mulheres de várias gerações.
Rita Lee nasceu no último dia do ano de 1947, na capital paulista. Sua influência pelo rock veio desde cedo, as músicas de Elvis Presley, Beatles e Rolling Stones embalaram sua juventude, ao lado de clássicos da MPB como Cauby Peixoto, Ângela Maria, Maysa e João Gilberto, que seus pais ouviam em casa.
Foi ainda adolescente que Rita começou a compor, época em que passou a integrar grupos de rock. Mas foi como integrante da banda “Os Mutantes” que ela passou a se destacar. O grupo, que fez parte do movimento tropicalista, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé, gravou apenas seis álbuns, mas que marcaram para sempre a história da música brasileira. Sua saída da banda foi conturbada, o fim do casamento com Arnaldo Dias Baptista, outro membro d’Os Mutantes, e divergências sobre o futuro da banda, mudaram os rumos de sua carreira.
Rita Lee, criou então, a banda “Tutti Frutti”, onde conheceu o grande amor de sua vida, Roberto de Carvalho, um parceiro musical e de romance, com quem teve três filhos: Beto Lee, João e Antônio. Em 1976, grávida do primeiro filho, Rita foi detida pela ditadura militar por porte e uso de maconha, num ato para servir de exemplo aos jovens da época, a cantora foi condenada a um ano de prisão domiciliar, e, para fazer shows, precisava de autorização de um juiz.
Numa época em que a juventude era exposta às drogas, sexo e ao álcool, Rita Lee não foi um caso à parte, mas, em 2006, com a chegada da primeira neta, a roqueira foi em busca de reabilitação e conseguiu se livrar das drogas.
Sendo uma mulher em destaque num meio dominado pelos homens, Rita era considerada um ícone feminista, embora nunca tenha se considerado como tal — “Nunca carreguei bandeira de feminismo. Eu era a única menina roqueira no meio de um clube só de bolinhas, cujo mantra era: para fazer rock tem que ter culhão. Eu fui lá com meu útero e meus ovários – e me senti uma igual, gostassem eles ou não. Sou do tempo em que o feminismo era queimar sutiã no meio da rua, e eu nunca tive peito suficiente para sequer usar sutiã. Talvez eu seja uma feminista gauche”.
Ainda assim, suas letras tinham o empoderamento feminino intrínseco, como em Pagu (2000), em que ela canta — “Minha força não é bruta/ Não sou freira, nem sou puta/ Porque nem toda feiticeira é corcunda/ Nem toda brasileira é bunda/ Meu peito não é de silicone/ Sou mais macho que muito homem”; ou em Todas as Mulheres do Mundo (1993), em que Rita afirma que todas as mulheres, “socialites plebéias, rainhas decadentes, manecas alcéias, enfermeiras doentes, madrastas malditas, superhomem sapatas, irmãs La Dulce beaidetificadas”, têm um quê de Leila Diniz, atriz brasileira de cinema e TV, conhecida por incomodar os moralistas da ditadura militar, pelos seus ideais e atitudes libertárias. Rita Lee falava abertamente sobre sexo e sexualidade numa época em que as mulheres em geral não tinham liberdade para tratar desses “tabus”.
A morte de Rita Lee, é mais uma grande perda irreparável para a música nacional, que já vem sofrendo perdas inestimáveis, como Gal Costa, Erasmo Carlos e Elza Soares. E nesse dia triste, fica aqui a minha homenagem a essa mulher extraordinária, que tanto me acolheu todas as vezes que me vi na letra de Ovelha Negra (1975) e que, com toda certeza do mundo, fez a mim e a um monte de gente feliz. Hoje em dia, toda mulher é meio Rita Lee.
Graduanda do Curso de Letras da Universidade Regional do Cariri e colunista do Blog Literário Nordestinados a Ler