Ludimilla Barreira*
Maria da Penha Maia Fernandes. Qualquer palavra depois desse nome possivelmente será repetitiva e pouquíssimo agregadora aos fatos que o mundo já conhece. Pois é, o mundo. Logo que Maria da Penha Maia Fernandes empresta uma forma mais íntima do seu nome, Maria da Penha, à terceira lei mais moderna no combate à violência doméstica, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU).
Pensando em como escrever essas linhas, dediquei-me a algumas leituras, principalmente ao livro Sobrevivi… Posso Contar, que ganhei com dedicatória da própria autora. Além disso, assisti e ouvi diversas entrevistas. Descobri que estudamos no mesmo colégio em Fortaleza, que na nossa época era intitulado escola para moças, o Colégio Juvenal de Carvalho. Ela, aluna dedicada, teve os estudos custeados pelos seus pais, Maria Lery Fernandes e José da Penha Fernandes, através de muito esforço e trabalho. Em momento seguinte, ingressou na primeira turma de farmacêuticos-bioquímicos da Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade Federal do Ceará.
Teve um relacionamento amoro que se consolidou em um casamento, mas que trouxe inúmeras decepções, findando após cinco anos. Nesse momento, ela resolveu intensificar sua vida acadêmica e profissional com um mestrado na Universidade de São Paulo – USP. Foi quando, através dos encontros entre os estudantes, conheceu o homem que seria seu futuro agressor, um colombiano que não era naturalizado no Brasil e apenas tinha permissão para estudar.
Com um início de contos de fadas, o relacionamento parecia perfeito para todos ao seu redor e para a própria Maria da Penha. Porém, com a estabilidade conjugal e mudanças, ela foi surpreendida pela transformação do homem que, antes afável, passou a ser hostil e intransigente, após alcançar sua naturalização no Brasil, com o nascimento da primeira filha do casal. Vale salientar que, na década de setenta, os requisitos para o gozo desses direitos eram diferentes da realidade apresentada pela Constituição Federal de 1988.
Então, percebi que havia um ponto para ser desenvolvido. Tratamos de toda a história da Maria da Penha de forma padronizada, falando sobre a ordem cronológica dos fatos, recordando minuciosamente as principais datas, e, de certa forma, cedendo um pouco do protagonismo da sobrevivente para o seu agressor. Mas, mesmo antes da tragédia, temos a trajetória de uma mulher, como tantas outras, que vivenciou união conjugal na amargura da violência.
Por isso, mesmo com o peso da tentativa de homicídio, há um grande arco de trajetória que nos leva a perceber que não foi uma mudança brusca de personalidade e interesses no seu ex-companheiro. É notável que, antes dos atentados vivenciados em 1983, havia uma onda de terror que permeava a vida de Maria da Penha e de suas três filhas. Estas, vale frisar, foram as suas razões para resistir a todas as tentativas de infelicidade condicionadas pelo seu ex-marido.
Além da mãe, as três garotas foram vítimas de muitas ações violentas do pai. Alguns relatos são profundamente tristes. Os que mais me marcaram, dentre tantos, foram a ordem para que as crianças não bebessem água a partir de meio-dia, no intuito de evitar que elas fizessem xixi na cama à noite; e a outra, o momento em que ele prende as mãos de uma das filhas com meias durante o sono, para que ela não chupasse os dedos.
No mesmo sentido, há outro trecho que extraí, quando ela conta: “Nada satisfazia Marco, nada o agradava. Eu vivia tensa… Ele não suportava o choro das filhas”. O crime do dia 28 de maio de 1983 foi o ponto alto de uma crescente de atos graves que também deixaram marcas perenes. Por isso, além do luto pela perda de mobilidade, há outra subtração grave: a que foi vivenciada pela mulher que um dia sonhou com a construção de uma família e que tanto lutou para que todos cumprissem seus papéis com sucesso.
Ela viu seu oásis de amor secar e lutou para reverter a situação. No entanto, uma união é composta por duas pessoas, por causa disso, o compromisso de ambos é necessário. Trago as palavras dela para exemplificar “… Marco não se importava em mostrar a sua face mesquinha e violenta. No íntimo, eu desejava ardentemente que tudo voltasse a ser como antes, quando reinava a paz em nossa convivência”.
Quando falo da lei que carrega seu nome, gosto de comparar o quanto era difícil ser mulher em um momento anterior, afinal, vivíamos uma ditadura militar. Apesar do efervescente momento dos movimentos feministas da segunda onda, foram tímidas as mudanças jurídicas, como exemplo, a dificuldade em pôr fim a um casamento, sendo possível apenas a partir de 1977 a dissolução definitiva da sociedade conjugal. Não que fosse fácil alcançar o momento do divórcio. Na verdade, eram tantas exigências que para muitas mulheres, parecia impossível conquistá-lo.
Diante de tantas dificuldades, a autora registra enfaticamente a importância que teve a sua sólida rede de apoio. Ela faz questão de frisar todas as ajudas que recebeu ao longo do seu percurso. Conseguiu se restabelecer, dentro dos seus limites, e procurou justiça. No entanto, não sabia que uma longa jornada em busca de justiça a aguardava.
Por fim, diante de todos os privilégios que uma mulher branca, com acesso à educação e com estabilidade financeira, Maria da Penha não esteve imune a circunstâncias tão cruéis, afinal, não há privilégio que impeça uma mulher de ser violentada.
Sobre a autora:
Ludimilla Barreira
*Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.