Dina Melo*
Quem anda pela Terra há de pisar em espinhos. Sem dúvidas, Socorro pisou em vários deles. Cresceu louca. E triste. E desamparada. E marginalizada. Injustiçada, maltratada, esquecida, amedrontada.
Ela bateu, apanhou, sua loucura provocou medo nas pessoas, mas ela se assustou também. Ela vagueou muitas vezes pelas estradas, sem destino, deixou-se anoitecer no mato, correu em desatino, olhou pelas frestas das janelas, quis saber o que havia lá dentro.
Será que teve poesia na vida da Socorro? Houve mãos estendidas, carinhos, sussurros, beijos, sonhos?
Alguém a matriculou na escola, comprou cadernos, disse que ela era bonita, que sua pele era macia, arrumou seus cabelos? No colégio, chamaram-na para brincar no recreio, uma menina disse – quero ser sua amiga, vamos pra minha casa?
Socorro apaixonou-se pelo rapaz de sorriso largo e cabelos cor de sol? Ele leu as palavras de seus lábios? Imaginou o perfume dos seus dedos? Ou não percebeu seu olhar?
Ela pegou água na cacimba, tapou os buracos do chão de terra da sua casa, areou as panelas, catou feijão, procurou ovos de galinha na capoeira, fez vassouras de mato pra varrer o terreiro, rezou as novenas de Nossa Senhora no mês de maio?
Ela conversava com a Francisca, com a Maria Gripina, com a Fátima do Coquil, com a dona Neném, com a Mazé, com a Antônia Paulino, com a Romana? Essas mulheres lhe ensinaram algo, partilharam confidências com ela?
Lembro do dia em que ela tirou o sutiã na praça ao lado da minha escola, o desespero da loucura. Saímos correndo pra ver o que estava acontecendo e, no meio dos canteiros, lá estava Socorro, o dorso nu, talvez rindo, talvez gritando, mexendo os braços rapidamente, nos olhando. As crianças apontavam, riam, divertiam-se com aquele espetáculo inesperado.
– Eu conheço ela, mora perto da minha casa, no mesmo sítio. Essa frase agora soa tão baixo na minha memória que eu não sei se a pronunciei ou se ela ficou dentro de mim, diluída no sal das lágrimas represadas na minha boca.
Toda essa cena está num quadro na minha memória e me acompanha desde os nove anos de idade. As cores, os gestos, os sons. Os meninos gritando peitos e eu ouvindo sofrimento. Recordo que sentia pena dela e só pensava, tomara que ela vista logo a blusa.
Dela guardo poucas histórias, minha vivência de criança não me permitia enxergar muitas coisas, mas lembro com nitidez do medo que eu tinha de encontrar a Socorro no caminho quando ela estava doida, ou seja, quando sua loucura não estava controlada. Minha mãe dizia, se você avistar a Socorro na estrada, volte correndo pra casa. E corra rápido, porque ela é ligeira.
Sei que no dia em que morreu, num domingo à tarde, ela estava numa festa no sítio Janeiro. Ela dançava na hora em que sua alma não aguentou mais tanta solidão e quis fugir do cárcere?
A coisa mais triste que guardo desse dia não foi sua morte, que talvez tenha sido uma libertação, mas a notícia de que seu pai, avisado do falecimento, precisou carregar a filha morta pra casa num carrinho de mão. De que outra forma ele poderia levá-la se seu pedido de ajuda para colocar o corpo dela em cima de um carro aberto foi recusado?
Senti tanta raiva e tanta dor ao ouvir esse relato. Fiquei pensando no seu pai, já velho, percorrendo a estrada que separava os dois sítios, olhando o corpo da filha encolhido pra caber no carrinho de mão. Que dores, além da morte e da recusa de levarem sua filha de uma forma mais digna, ele também carregava, inscritas naquele corpo morto?
Eu estava adulta, não morava no sítio havia muitos anos, não fui ao funeral da Socorro. Mas alguns recortes da história dela, assim como das de outras mulheres que moravam no sítio, povoam minhas memórias da infância.
Sim, quem anda pela Terra há de pisar em espinhos. E eles ficam escondidos sob as folhas secas, traiçoeiros, roubando de nós o deslizar suave pela vida.
Sobre a autora:
Dina Melo
*Amante das árvores, das nuvens, do vento, das águas e do som das palavras. Pés no chão, cabeça nas estrelas, sol em Touro e lua em Gêmeos. Herdou a força e a ligação com a Terra das suas ancestrais Tabajaras da Serra da Ibiapaba. Estudou Direito na UFC e é servidora do TRT Ceará.