Tag: Alexandre Lucas

Grávido aos 47
Literatura, Sem categoria

Grávido aos 47

Acordei grávido aos 47 anos. A lua estava cheia e os lençóis, suados. Tomei duas garrafas de água e meus olhos pareciam sambar. Engravidar aos 47 é como chegar aos 18 — não sei bem a relação desta analogia, mas acredito que faça algum sentido. Aos 18, a responsabilidade aumenta e o mundo parece ser outro. Aos 47 anos, ainda se tem muita coisa para fazer. Meus avós se foram perto dos noventa. Morreram um pertinho do outro, tanto os maternos quanto os paternos. Não sei se chego até lá. Não penso em pular da varanda, tento me alimentar bem e, por incrível que pareça, frequento a academia — mas não tiro foto. O destino é imprevisível. Não estava nos planos engravidar aos 47. Mas aos 47 engravidei, e amanhã o mundo pode acabar. Enquanto ele não acaba, cuido da gravidez. Talvez sejam gêmeo...
Quebra-queixo, caldo de cana e ipê
Literatura

Quebra-queixo, caldo de cana e ipê

Atreparam-se para colher sementes de ipê-rosa. Suas vagens caíram, as sementes se espalharam, cataram uma por uma. Os ipês são árvores de encanto: os rosas guardam uma beleza calma, já os amarelos parecem que estão com os dentes para fora sem parar de rir. Sementes de ipê guardadas em sacos de papel, prontas para o plantio. Plantar e colher exige delicadeza e dedicação. Teve naquele dia ipês no meio do caminho. Nem só de pedras se compõem as estradas. Quebra-queixo, caldo de cana, sol para cada um, beijos sem quatro paredes e olhos de margarina na quentura do meio-dia pareciam afagos com algodão e nuvens. Atrepados na ponta da língua e dos sonhos, o ipê floresce. Poderia falar de todas as pedras do caminho e do desespero do poeta, mas contenho-me por um instante no quebra-queixo, ...
A florzinha de acerola
Literatura

A florzinha de acerola

Manhã, café para fazer. O Chupa-Manga visitava a varanda; pequenino, se escondia entre as folhas. A poeta das plantas colhia acerolas. Chegou orgulhosa da sua colheita: maduras, doces e vermelhas brilhantes. Foi logo fotografar, experimentou composições e provou cada fruto delicadamente. Café da manhã pronto. Há dias atípicos, em que o relógio é esquecido, porque o único compromisso está posto à mesa e no desejo de celebrar a delicadeza. Melancia, morango, suco de acerola, uvas, café, cuscuz, ovos e queijo. Do lado esquerdo estava a poeta das plantas, comendo e dividindo conversas. Lembrava que uma hora demorou quase um dia; promessa difícil é passar pouco tempo. A gente não faz contabilidade das horas, quando vai ver: já é outro dia. Antes do meio-dia, a poeta das flores oferta uma ...
Agricultores de Estrelas
Literatura

Agricultores de Estrelas

Vontade de pichar os céus só para dizer o quanto sinto. Nossos manifestos de amor são escritos sobre os olhos, arados na terra, debaixo dos lençóis, pelas manhãs com café e cafuné, na simplicidade de lavar a louça, na rega das plantas, na oferta da batata doce, na pimenta e no chocolate. Falta respiração; a velocidade dos acontecimentos nos faz dançar. São versos costurados no mistério e no segredo. Cabe o céu e a terra no poema sonhar. Hoje fiquei na dúvida, na verdade sem respostas. Não sabia direito o que escrever ou oferecer. Teria um trabalho imenso para enumerar a intensidade, as trocas, o sorriso fácil, os olhos brilhantes, a comida dividida entre o verde e a varanda. O sanhaço  se equilibrando no fio, bicando banana logo cedo. Não saberia por onde começar, se por um ch...
A saudade é uma porta aberta
Literatura

A saudade é uma porta aberta

Dezoito chaves. Manhã, segunda-feira. O ipê do jardim acena com suas flores amarelas para um dia nublado. Faz calor. Garoa. As dezoito chaves abrem cadeados e portas, nenhuma abre caminhos. O sol começa a dar as caras, mas logo as esconde. Tomo suco de caju enquanto brinco com as dezoito chaves. Conto até dez para tentar escutar a respiração: ela está fazendo caminhada e ouvindo música clássica. Os dias estão com gosto de primavera, e as borboletas têm aparecido na varanda. Tenho plantado algumas estrelas e carregado no bolso as chaves. Outro dia, ganhei uma música fazendo cafuné e um par de olhos brilhando como purpurina. Guardei na geladeira um bolo de pote para comer quando puder. Escrevi um poema parcelado em dez vezes para que as surpresas possam ser diárias. A saudade está d...
                           Mudando o lugar de colocar perfume
Literatura

                           Mudando o lugar de colocar perfume

Alinhar os quadros: milímetros podem alterar o resultado. Revirou a casa. Espanou o coração. Mudou os móveis como quem planta rosas, com delicadeza e cuidado para não se machucar. Dançou no meio da sala enquanto olhava as paredes. Em cada canto, desenhou uma borboleta; em outros, deixou flores e cheiros. Bordou a casa com as mãos cheias de ternura, marcas de primaveras e invernos. As plantas respiram diferente. A casa passa por reformas. Aos poucos, a cumplicidade se aloja, e os sorrisos vão encontrando abrigo. A cama ganhou braços macios para acolher noites de sonhos e de frio. No jardim, a rosa amarela destaca sua presença. Tomo café. Faço algumas declarações de amor. Atesto que coisas saíram do lugar e que ando mudando até o lugar de colocar perfume. Sobre o autor: Al...
Debaixo do pé de manga tinha um sonho
Literatura

Debaixo do pé de manga tinha um sonho

Talvez Lili fosse seu apelido. Era madrugada de sábado. A menina de treze anos se sacudiu com os gritos. Já era tarde. O homem se mexia—talvez arrependido, talvez vingado, concretamente embrutecido. Seus olhos se perdiam no meio do sangue. Lili já não gritava. Não mexia nada. A menina de treze anos não sabia se gritava, não sabia se corria, não sabia de nada. A menina não teria mais Lili. "Lili está entre as estrelas olhando por nós." Mentira. Lili está costurada nos olhos e na cabeça da menina de treze anos. — Mãe, mãe, mãe... Lili já não escuta. Dizem que Lili foi vista debaixo de um pé de manga, entre beijos e abraços. Lili devia estar enxugando lágrimas, pegando vento, tentando respirar. Lili volta. Lili não volta. Sobre o autor:
A Travessia na Casa Abrigo
Literatura

A Travessia na Casa Abrigo

Um jarrinho com flores de Nossa Senhora. A poeta das plantas oferta o tempo, as mãos para massagear a terra e o brilho dos olhos para adubar a esperança. Há dias, a poeta tempera o solo com nuvens e cores, rega com sorrisos o poema incerteza. A simplicidade alimenta o verso partilha. A poeta, traquina, arma sua rede na lua e se veste de pétalas. A travessia é um sonho entre céu e terra, onde a liberdade grita carinho. O passado é uma prisão desleixada de amor. A poeta tremula sua bandeira de folhas e ventos, um dia de cada vez. O jarrinho de flores de Nossa Senhora é página de um livro inacabado. A poeta não cansa de escrever, na varanda de cara para o sol e a lua, a sua poesia diária. Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho....
  Ensaio para Dias Floridos
Literatura

  Ensaio para Dias Floridos

Macramê se espalhando pelas mãos. A linha costurava paciência, pontuava feridas, juntava no chão a delicadeza. O macarrão com pimenta calabresa, molho de tomate e alho refogava as linhas do jantar, que se nutria de olhares esboçados, de um armarinho de sorrisos. Alguns toques suaves de beijos se faziam vento.  O vestido de listas azuis, bordado de flores, a deixava um jardim. Não era primavera, mas as flores brotaram num piscar de olhos. A jiboia, ganha de presente, estava se recuperando para se espalhar em linhas pela casa, deixando rastros verdes e brancos. Enquanto comia morangos, colhia suas sementes para dois vasos, para engravidar moranguinhos. O vestido de listas azuis, bordado de flores, saiu antes do sol nascer, deixou o macramê para refazer – aquele que segurava um lam...
A poeta das plantas
Literatura

A poeta das plantas

Nas manhãs frias e chorosas, fabriquemos o fogo e os girassóis. Na entrada da casa, espadas de São Jorge e Santa Bárbara testemunham a travessia do tempo, do cuidado e do carinho. As noites estão mais iluminadas: faço fogueira, deito no colo, escuto histórias que assanham meus cabelos. Fiz a barba, cortei o cabelo, estou mais novo. A idade é a mesma: quatro décadas e meia dúzia. Chuto pedras para brincar com as estrelas, ando meio abobado. Talvez seja a fogueira no meio da casa e tuas espadas de São Jorge e Santa Bárbara. Tomo sopa de costela com pão, enquanto observo o gosto do teu sorriso. Tuas malas, aos poucos, vão se encaixando. Mando fazer uma chave da porta de entrada para que entres sem bater. Podes incendiar as madrugadas e o resto do dia. Quando entrares, olha para os lados...