Tag: Alexandre Lucas

Parede laranja
Literatura

Parede laranja

Alexandre Lucas Fecho o livro. O menino olha fixamente para a parede cheia de palavras, sua mão segura o queixo e tapa a boca. As palavras não fazem sentido algum quando não se sabe ler.   O menino até tentava juntar as letras para soletrar nexos.   A parede recebe a fúria e a ternura, as dúvidas e os desencontros. É permitido escrever na parede laranja, uma lousa transformada num confessionário público, a censura quase não existe. A gramática tem regras, e a linguagem é uma liberdade rodeada de grades. A parede laranja é um começo para romper com as palavras engasgadas no medo e nos arames farpados das normas do silêncio.   O menino que lia o que não sabia descrever já não estava mais na sala, impossível quantificar as suas leituras.   A parede...
Maria talvez não saiba
Literatura

Maria talvez não saiba

Alexandre Lucas - Ladrão, ladrão. Gritava, o bodegueiro com o facão em punho, atacando o balcão. Isso aconteceu quinta-feira, estava dormindo. Acordo atoado. Pego o celular: “Policial militar é morto a tiros ao sair de partida de futebol”. Leio a matéria: estava acompanhado da esposa. Os assassinos não foram identificados. Vários tiros, alguns na cabeça. De acordo com Clarice Lispector: “Uma bala bastava. O resto era vontade de matar”. Escuto Sabotage e Jorge Mautner, próximo do meio-dia. Hoje é domingo, tento criar minha rotina, lá fora tem jogo, mas não queria soar assim, queria conversas leves e massagens fáceis. O bodegueiro ainda mantém a bodega aberta. No domingo, vende mais e as notícias das vidas alheias preenchem as prateleiras. Sabotage e Jorge Mautner canta...
Voadores
Literatura

Voadores

Alexandre Lucas Pássaro grande que conheço é o Urubu. A águia que nunca vi, aparecia na TV, parece que tudo que não é nosso, aparece como sendo na televisão. Por exemplo, é difícil ver um filme nacional nas emissoras do Brasil. Os Urubus os encontravam todas as manhãs. Eles ficavam no muro amarelo do prédio onde foi o Cabaré do Vitorino, aliás a boate, como era chamada. Ficavam ali sem império, vistoriando as sobras de comidas, as carnes em putrefação. Menino, passava horas admirando os Urubus. A linha do trem nos dividia, o trânsito era restritivo, nem todo mundo ultrapassava a linha, os prazeres da carne estavam tabelados logo a frente. Os Urubus já não os vejo por esses trechos. O muro amarelo já é outro, por ali, pelas manhãs escuto vozes de crianças, espero que elas  ...
A Prefeitura e o Sítio Urbano do Gesso
Política

A Prefeitura e o Sítio Urbano do Gesso

Alexandre Lucas O Sítio Urbano do Gesso é tratado pela Prefeitura Municipal do Crato como um projeto particular de uma organização, embora tenha sido reconhecido pela Lei Municipal nº 3.612/2019. O Sítio demanda da gestão municipal cuidados, orientação e fomento para o desenvolvimento dessa área verde urbana, localizada às margens da linha férrea. A lei, proposta pelo Coletivo Camaradas, prevê que essa experiência seja replicada em outras áreas da cidade.   No entanto, o que se observa é a negligência total dos dois últimos prefeitos.   Vejamos:   - Em 2023, o Coletivo Camaradas apresentou ao Conselho Municipal de Meio Ambiente e Mudança do Clima um projeto para revitalizar parte do Sítio. Aprovado pelo Conselho, o projeto não obteve resposta da Pr...
Resido numa casa de linhas
Literatura

Resido numa casa de linhas

Alexandre Lucas Mainha e painho costuram. Sempre quis costurar; até tentei, mas as linhas se embolavam. Vi tecido e couro sendo atravessados por agulhas, recebendo o abraço das linhas. Comi da costura.   Ainda é tempo de aprender. Mainha costura menos agora — a idade exige cuidados, já não precisa das madrugadas para sobreviver, está aposentada. Painho, inquieto inventor, hoje costura mais ideias que couro.   Parece que a gente está sendo descosturado e costurado ao mesmo tempo. A vida é uma máquina de costura: às vezes a bobina engasga, a linha emperra. A agulha nem sempre obedece à nossa mão.   Vesti e calcei a costura de mainha e painho. Escrevo versos como quem solta pipas — dou linha, puxo, apareço e desapareço no céu, mas sempre impregnado do...
Como escolher pequi e desatar nós
Literatura

Como escolher pequi e desatar nós

Alexandre Lucas Encontrei vó deitada com a sua face de versos de paciência. Cresci querendo aprender com ela a desatar nós, um trabalho difícil, que exige destruir a velocidade e a agitação, cantarolar nos pensamentos e acompanhar a dança das folhas no sopro do vento.   Vó seguia, atravessando as portas, as salas, os quartos. No final da tarde, sempre dizia que estava quente e fazia café. Enrolava as histórias como quem amaciava as memórias, demorando para dizer como José de Alencar, escritor cansativo para ler.   Não lembro de vó ter me batido, nem com palavras. Tenho lembrança dela me ensinando a escolher pequi: quando o biloto sair facilmente do pequi, no toque do dedo, ele estará maduro. "As laranjas mais lisas, sem a pele mondrugosa, são as melhores", ensi...
Logo esse bolo?
Música

Logo esse bolo?

Alexandre Lucas Era o aniversário da minha irmã. Eu estava naquele dia de barriga ruim. Lá tinha reza e comida. Fui só para dar os parabéns—nada de comer nem de rezar. Até precisava de umas rezas e de comer também, mas a barriga estava uma bagunça.   Taquei-me na rede, tentando dormir cedo. Lembro que tinha avisado minha tia sobre a minha situação. Ela foi rezar.   No dia seguinte, ao visitar meu pai, ele anunciou:   — Tem um negócio aí para você, um bolo que sua tia deixou.   Passei rápido, estava com pressa.   Só depois fui ver o bolo. Ao abrir a geladeira, deparei-me com uma fatia numa embalagem plástica:  bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Logo duvidei que fosse coisa da minha tia. Por que aquele bolo?, p...
Mãos estendidas
Literatura

Mãos estendidas

Boca miúda, franzida. Dentes quebrados, outros amarelos. Murmurava canções desesperadas, a mão estendida. Olhos desenhados como mapas de cansaço. Senhora negra, quase setenta anos, provavelmente. Percorria ruas e mesas, trocando caminhadas por sobrevivência. Vestido florido, transitava entre olhares áridos e terras asfaltadas. Apanhava silêncios. Balanços de cabeça negando trocados. Eu tomava café e lia Federico García Lorca. A poesia dele desfolhava paisagens distantes e, de repente, colocava aquela senhora no centro da mesa. Sua boca franzida tocava meus olhos. Antes dela, eu também tentava a sorte — jogava na loteria a esperança. O jogo era do meu pai. A chance, mínima. Voltei para casa carregando nos braços o peso daquela boca. Ela não fazia poemas. Nunca leria Lorca. Naque...
Noticiário da Manhã
Literatura

Noticiário da Manhã

Alexandre Lucas Olhos brilhantes, aparentemente atentos, corpo deitado. Era segunda-feira, seis horas da manhã. Parte da cidade se espreguiçava; para outra, o dia já havia começado bem cedo. Apenas um gole de café, a barriga ainda vazia. Os olhos brilhantes, aparentemente atentos, e o corpo deitado estavam ali, na rua. Alguém passou, fisgou a imagem e desapareceu daquela paisagem. Era impossível saber o que acontecera. Restava apenas: olhos brilhantes, aparentemente atentos e corpo deitado. No canto, como quem não quisesse chamar atenção ou atrapalhar o fluxo, mantinha-se inerte. Os mais lentos conseguiam perceber. A cidade está veloz. A violência escorre sobre os olhos, parece natural. O almoço enlatado, as verduras dronadas de agrotóxico e o noticiário — suco de sangue — não ...
Mastigando Rapadura
Literatura

Mastigando Rapadura

Alexandre Lucas Vazio preenchido de ecos do passado. A tarde transbordava ausências, grilos cantavam nos pensamentos. Seu corpo estendido no chão frio da sala dos livros, enquanto o reggae batia a dança das cobras. Lia sobre os tempos de chumbo e a rebeldia das palavras; foices contra balas, poemas fabricados como coquetéis molotovs nos aparelhos da clandestinidade. Sonhos montados sobre esperança, erguidos de braços e assobios. A tarde escancarava o desejo das multidões, mas só as lembranças compareciam. Ali, na trincheira da sala dos livros, tentava desenterrar o texto. Na guerrilha, há momentos sem pares nem água – às vezes é preciso recuar sete estrelas e sete sóis, para nunca mais voltar. À tarde, que já poderia ser noite, prosseguia. Lá fora, o filho desbravava a cidade em f...