Tag: Alexandre Lucas

Ando nu pelas manhãs
Literatura

Ando nu pelas manhãs

Alexandre Lucas Passou a noite remoendo as páginas de um livro velho, roídas e amareladas, temperadas por traças e fungos. O livro trazia receitas, mas pouco importava o que ele continha; entrar na contramão dos pensamentos era mais urgente. Escreveu durante a madrugada, umedecendo e atravessando os papéis. O livro velho servia de encosto. Espremia a velocidade da dor nas folhas. Amanheceu frio e ventoso. Onze páginas na mão, uma carta para não ser entregue. Releu, acendeu um incenso de rosa branca, tirou os óculos para enxugar as lágrimas. Tocava Coragem de Castello Branco, baixinho. Onze páginas na mão, procurava os erros que a gramática nunca encontraria. Diante da varanda, avistava o verde das folhas da chapada. Os pássaros cantavam e bicavam a banana pendurada no telh...
Celeste do Gesso
Literatura

Celeste do Gesso

Alexandre Lucas Na beira da calçada estava Celeste. Manhã, carros e pessoas passando. Saia rodada da cor de poeira, blusa azul de alça. Sobe a saia, acocora e mija. Levanta, acende o seu cigarro brabo e coloca uma sacola com mantimentos na cabeça e segue. A mão estendida de Celeste vai abordando quem cruza o seu caminho. Boca sem dentes, mastigando fumaça, dispara:— Me dê dois real. Celeste se aproxima como quem vai beijar, de tão próxima que fica. Visita a Padaria Nobre dez vezes ao dia. Aborda tudo que é de gente, quase beijando. Apenas as crianças ficam de fora.— Me dê dois real. Sai Celeste todos os dias, revirando o centro da cidade com a sua mão estendida. Caras franzidas, xingamentos e olhares de abraços. Às vezes, umas moedas; com sorte, dois reais. Final d...
Os dois dedos na garganta
Literatura

Os dois dedos na garganta

Alexandre Lucas Engasgou-se com alfinetes. Tarde de domingo, os lençóis secam ao sol. A criança vai para algum lugar, pendurada no tuntum do pai. O bar tocava a música de retalhar corações; duas mesas e olhares perdidos se encontravam por ali. Na calçada, o senhor de cabeça branca limpa as unhas dos pés com uma peixeira, enquanto, no pé da porta, a mãe catava os piolhos da filha. Os vestígios das pipas balançam presos nas árvores, e os meninos sobem para colher azeitonas. A paisagem é uma calmaria. Engasgado, no último andar: portas fechadas, janelas abertas. Um blues para acalmar e esconder a agonia. Os alfinetes travam as palavras, furam a garganta. Alguém bate na porta — é o vendedor de orações. O silêncio responde; o vendedor segue outro caminho. Engasgado, enfia ...
Periferia morta, povo vivo
Política

Periferia morta, povo vivo

Alexandre Lucas A periferia não é para ser espaço de orgulho. Ela surge como consequência desastrosa e perversa do modelo capitalista. É fruto das relações de exploração e opressão. A distribuição desigual da economia estratifica sócio espacialmente. De um lado, os excluídos e, do outro, os incluídos; de um lado, os que podem comprar os direitos e, do outro, os que têm os direitos negados. Romper com a romantização da periferia é uma necessidade humanitária. A estética periférica ou os estereótipos da periferia não devem ser percebidos como instância limitante; pelo contrário, devem servir como ponto de partida para abarcar novos horizontes e reafirmar que outra sociabilidade é possível, baseada no direito coletivo do espaço urbano, com redução dos impactos ambientais, socialização d...
Bilhete para pequena flor
Literatura

Bilhete para pequena flor

Alexandre Lucas Lua crescente. O cheiro do cachimbo massageava como mãos. O chão era o assento da conversa. Pés descalços. Copos de barro. Luzes apagadas. O brilho da boca pronunciava dança. Bebia o espremido do limão com o gosto esparramado da hortelã. A meia-noite se aproximava e o pôr do sol não foi adiado. Dançava consagrando o instante, ritual sagrado do afeto. O cheiro das ervas percorria os olhos, fazendo rios na imaginação. Os dedos andavam com calma, tentando escutar a respiração; provável que quisesse ler a palma da alma. Vasculhou as pastas para sentir as cores, as formas e as texturas. Escolheu três imagens e deixou um rio, cheio de pequenas flores, que vão como barcos no balanço das águas. Julho é frio, venta e pede abraço. As ervas para o chá estão guardadas, espe...
O velho câmera
Sem categoria

O velho câmera

Alexandre Lucas Buscava respostas para as preocupações como se a madrugada respondesse alguma coisa. Os cachorros latiam para cada mexido de gente. O velho por trás da porta segurava as suas incertezas e tentava colher alguma novidade, um simples bom dia para conforta a sua solidão. O homem corcunda passa cedo para ir ao mercado, junta lavagem para os porcos. A bodega abre as seis horas. Os cachorros correm. O homem ensaca frangos dentro da D20. A mulher passa para comprar o pão fiado, paga quando puder. O velho por trás da porta monitora o movimento da rua, o homem câmera. Os pombos buscam os milhos que restaram, caminham como velhas mancas. A senhora que acorda cedo espana a parede para tentar escutar melhor as conversas. O velho por trás da porta chora. Já não tem mãe, nem p...
Dorinha foi pra rua
Literatura

Dorinha foi pra rua

Alexandre Lucas Abria Eduardo Galeano – Dias e Noites de Amor e Guerra. Peço um café. Sou interrompido com um bom dia. Uma companheira de luta, cujo nome desconheço, me oferece um exemplar do A Verdade. Antes de comprar, conversamos rapidamente. Pedi dois exemplares, mas, como boa militante, só restava um. Saiu, deixando pólvoras de esperança. Era manhã de sábado. Aos sábados, visito o centro da cidade para bisbilhotar e fazer as apostas do meu pai, que sonha em ganhar na loteria. Aproveito sempre para tomar café e ler algumas páginas; às vezes, ganho companhia, que não atrapalha em nada a leitura. No balcão, leio A Verdade entre goles de café. Paro a leitura. A mulher pede uma dose sem equilibrar as palavras e as pernas. Pergunta se posso pagar uma dose; ofereço ...
Parede laranja
Literatura

Parede laranja

Alexandre Lucas Fecho o livro. O menino olha fixamente para a parede cheia de palavras, sua mão segura o queixo e tapa a boca. As palavras não fazem sentido algum quando não se sabe ler.   O menino até tentava juntar as letras para soletrar nexos.   A parede recebe a fúria e a ternura, as dúvidas e os desencontros. É permitido escrever na parede laranja, uma lousa transformada num confessionário público, a censura quase não existe. A gramática tem regras, e a linguagem é uma liberdade rodeada de grades. A parede laranja é um começo para romper com as palavras engasgadas no medo e nos arames farpados das normas do silêncio.   O menino que lia o que não sabia descrever já não estava mais na sala, impossível quantificar as suas leituras.   A parede...
Maria talvez não saiba
Literatura

Maria talvez não saiba

Alexandre Lucas - Ladrão, ladrão. Gritava, o bodegueiro com o facão em punho, atacando o balcão. Isso aconteceu quinta-feira, estava dormindo. Acordo atoado. Pego o celular: “Policial militar é morto a tiros ao sair de partida de futebol”. Leio a matéria: estava acompanhado da esposa. Os assassinos não foram identificados. Vários tiros, alguns na cabeça. De acordo com Clarice Lispector: “Uma bala bastava. O resto era vontade de matar”. Escuto Sabotage e Jorge Mautner, próximo do meio-dia. Hoje é domingo, tento criar minha rotina, lá fora tem jogo, mas não queria soar assim, queria conversas leves e massagens fáceis. O bodegueiro ainda mantém a bodega aberta. No domingo, vende mais e as notícias das vidas alheias preenchem as prateleiras. Sabotage e Jorge Mautner canta...
Voadores
Literatura

Voadores

Alexandre Lucas Pássaro grande que conheço é o Urubu. A águia que nunca vi, aparecia na TV, parece que tudo que não é nosso, aparece como sendo na televisão. Por exemplo, é difícil ver um filme nacional nas emissoras do Brasil. Os Urubus os encontravam todas as manhãs. Eles ficavam no muro amarelo do prédio onde foi o Cabaré do Vitorino, aliás a boate, como era chamada. Ficavam ali sem império, vistoriando as sobras de comidas, as carnes em putrefação. Menino, passava horas admirando os Urubus. A linha do trem nos dividia, o trânsito era restritivo, nem todo mundo ultrapassava a linha, os prazeres da carne estavam tabelados logo a frente. Os Urubus já não os vejo por esses trechos. O muro amarelo já é outro, por ali, pelas manhãs escuto vozes de crianças, espero que elas  ...