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Janelas, flores, pregos e marretas
Literatura

Janelas, flores, pregos e marretas

Alexandre Lucas Pelas manhãs mais fubacentas, pendurava os olhos sob a janela para pescar flores e ler poemas escritos com pregos e marretas. Ancorado na janela, voava até as estrelas e se estacava no mar. Levantava o tapete do chão e via o mundo se mexendo; nada estava morto. Levava a janela para cada viagem. Colocava-a na parte mais íntima dos seus lugares: no quarto, no banheiro e na escola de samba dos seus pensamentos. Flores, pregos e marretas insistiam em aparecer nas suas janelas, como o dia e a noite sempre aparecem. Certo dia, bateram na sua janela e a chamaram para dançar. Dançou de olhos fechados, como quem sente o gosto do doce lentamente. A dança durou três minutos. Depois, o batedor de janelas sumiu. Na manhã seguinte, os olhos estavam pendurados, pescando ...
Manhã, pão de coco, beijo doce
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Manhã, pão de coco, beijo doce

Alexandre Lucas O rio passava no meio do asfalto, e as flores ousavam nascer. O tempo era quente; setembro de muriçocas e de calor. As estrelas brotavam dos olhos, enquanto a lua acendia a cachoeira dos poetas. A dança da noite costurava os retalhos de brilho e esperança. Pétalas brancas amaciavam a rigidez do asfalto. Do megafone, anunciava-se, no pé do ouvido da noite, os versos traquinos de felicidade. Manoel de Barros e Pablo Neruda passaram a madrugada escrevendo inventices e mares de prazer. — Bom dia — pronunciava a flor, contorcendo-se, esticando os braços como quem quisesse abraçar as nuvens e ninar o mundo. Absurdo criar versos de ternura para jogar no baú e trancá-los no silêncio. Abram as noites para cultivar as manhãs com pão de coco e beijo doce. Sobre o autor:...
Textura de teia de aranha
Literatura

Textura de teia de aranha

Alexandre Lucas Chá de canela, alecrim do campo, adoçado com mel. — Será que tenho roupa para tomar deste chá? — disse a contadora de histórias, bolando de rir. Enquanto isso, o menino descalço, suado de jogar bola e com a camisa no ombro, encheu o copo de chá, bebeu e quis mais. O chá era a única bebida da noite. Conversas trocadas aqui e acolá, uma poesia. Quanto mais se bebia, mais o gosto do mel aparecia — estava concentrado no fundo da garrafa. O chá era o aperitivo do encontro. Quando todos foram para suas casas, a contadora foi narrar histórias em terras de verdes canaviais. O menino descalço já tinha ido dormir sem levar os pés. O fogo estava aceso. Outra garrafa de chá temperava a noite, cheia de curiosidade e de medo. Os copos de barro acolhiam o chá. O corpo se...
Carta para a presença
Literatura

Carta para a presença

Alexandre Lucas Poderia ter perdido a chave de casa dez vezes no mesmo dia e tê-la encontrado outras dez no bolso da calça. Talvez fosse possível se perder no caminho para o trabalho, esquecer de tomar café logo cedo e de vestir a roupa ao sair à rua. Mas, naquele dia, o esquecimento estava morto. A cada pisada, uma martelada era o lembrete. Decidiu guardar cada um e fazer de conta que uma amnésia havia feito morada. A história são recortes do tempo em que a amnésia é sepultada. Nada morre por completo. Aquele dia foi para o enfrentamento e a fuga. Viajou. À meia-noite, estava dormindo propositalmente. Se sonhou, fez questão de esquecer. Nenhuma carta ridícula foi disparada, e todas as cartas de amor foram queimadas — pelo menos naquele dia. O coração, costurado com barbantes enve...
O bêbado quer falar
Literatura

O bêbado quer falar

Alexandre Lucas “Tempo para sonhar” anunciava a placa na parede do cemitério. Sorrisos fabricados para vender esboçavam-se nos anúncios comerciais. Nas calçadas, as mãos estendidas assaltavam as mentiras vestidas de felicidade. O bêbado, descalço, de camisa encardida e calça camuflada de rigidez e terra, dançava, sorria e fazia caretas. Caía, levantava, seguia. Enquanto os outros compravam a embriaguez, o bêbado mendigava para beber. As ruas, emplacadas de rostos felizes, esbanjavam consumo. O bêbado consumia o cansaço da vida, o último buquê da esperança. O bêbado derrubava a rua, embaralhava as conversas e apontava a lucidez da realidade. Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho.
O pombo
Literatura

O pombo

Alexandre Lucas Parado diante do vai e vem dos carros, mais de vinte e nove minutos de espera. A impaciência quase transbordando pela cara. O trânsito das cinco da tarde é uma fila de desistência. Precisava apenas comprar o pão. Impossível de passar. Os carros transitavam num fluxo interminável. Era capaz do pão ficar duro. Precisava andar para diluir os problemas, mas os carros estavam sendo as pedras no meio do caminho. Faltava Drummond e não se tinha horizonte sem alvo para jogar pedras. A demora foi tanta que desistiu do pão. Andou sem planejar os caminhos e parou diante dos pombos, observou seus gestos e, impedido de voar, escreveu. Voltando para casa, o engarrafamento continuava, a padaria tinha fechado. Trazia um pombo debaixo do braço. Sobre o autor: Alexan...
O tamanho da reza
Literatura

O tamanho da reza

Alexandre Lucas -Rezei só o básico e fui dormir.   Comentou seu Raimundo, deixando dúvida sobre o tamanho de uma reza. A noite, ele ocupa a calçada para encontrar conversas, ver gente e encurtar o tempo para o dia seguinte.   Todo dia, que deve ter um santo, está Raimundo como um poste na calçada. Ver quem sobe e desce. Quem faz questão de falar e de calar.   Gosta de conversar sobre as histórias de antigamente, relembrar a vida alheia misturada com a sua.   Guarda tantas memórias que se perde entre elas. Troca personagens e tempos; às vezes, uma história entra noutra, refazendo coisas que não existiram.   Com oitenta anos, se perde e se guarda lembranças impossíveis de calcular. Raimundo entende de invenções, refaz histórias e cria...
Ventania em liquidificador
Literatura

Ventania em liquidificador

Alexandre Lucas Deixou uma vela acesa na mão do poema. A noite apagou as estrelas e a lua. Pela madrugada foi à praça, observou a angústia dos bancos vazios, apenas o vento falava.   Abraçou-se no vento para dançar uma valsa. Beijou a poeira com a língua nos céus. Tentava preencher a praça cheia dos seus vazios.   Era madrugada, o vento se conjugava com o frio. A maçã mordida se apresentava no meio da praça, rebolava com o vento.   — Quem quer maçã mordida?   Perguntava a si esbarrando no vento. O poema queimou durante a madrugada. Soprou o cadáver das palavras e mesmo assim não se livrou da poesia.   Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho.
Açougue do Pinto
Literatura

Açougue do Pinto

Alexandre Lucas Pinto vende cerveja e tira-gosto de carne de mulher. Nunca o vi vendendo outra coisa. Tudo está à venda: o silêncio, o ar, a bagunça, o corpo, o amor. Na esquina da rua mais distante, também se vende mentira, Coca-Cola e um pedaço de felicidade. Às vezes, é possível comprar até um lote no céu. Entre mesas velhas de madeira e um jukebox desmantelado — aquele aparelho em que se escolhe música com fichas —, lá está Pinto, com um sorriso pela metade. As mulheres se espalham pelas mesas, bebem, conversam, ouvem histórias de solidão, piadas improvisadas, porradas de palavras e nada com nada. Marcam o prazer no relógio e anotam com rostos cansados refletidos no espelho quebrado, mais um dia. Neguinha, a carne mais nova de Pinto, já tem 40 anos. Chegou há dois dias. É n...
Na casa da vó, tinha mais estátua de santo que arroz
Literatura

Na casa da vó, tinha mais estátua de santo que arroz

Alexandre Lucas — Alguém vai descer? Desceu o inesperado. Se viram, mas não se olharam. Nenhuma palavra foi trocada; o silêncio se fez morto — o contrário poderia ser o fim. Andar ficou arriscado: as ruas são as mesmas, mas os lugares mudaram. Quando sai de casa, se benze. Não toma só banho não, mas parece que só o banho faz efeito. Em toda saída, pede a bênção ao pai — que nunca abençoa menos que duas vezes. Antes era apenas uma; depois que foi ameaçado de morte, o pai reforçou a bênção. Pareciam oito anos, mas não passavam de nove meses. Na ditadura, os dias são mais longos, e nunca se está preparado para jogar o corpo na rua. Os olhos correm mais que as pernas, e o balançar das folhas pode ser uma grande carreira. Desceu a ladeira. Entrou na primeira porta, comendo interr...