Tag: Alexandre Lucas

Logo esse bolo?
Música

Logo esse bolo?

Alexandre Lucas Era o aniversário da minha irmã. Eu estava naquele dia de barriga ruim. Lá tinha reza e comida. Fui só para dar os parabéns—nada de comer nem de rezar. Até precisava de umas rezas e de comer também, mas a barriga estava uma bagunça.   Taquei-me na rede, tentando dormir cedo. Lembro que tinha avisado minha tia sobre a minha situação. Ela foi rezar.   No dia seguinte, ao visitar meu pai, ele anunciou:   — Tem um negócio aí para você, um bolo que sua tia deixou.   Passei rápido, estava com pressa.   Só depois fui ver o bolo. Ao abrir a geladeira, deparei-me com uma fatia numa embalagem plástica:  bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Logo duvidei que fosse coisa da minha tia. Por que aquele bolo?, p...
Mãos estendidas
Literatura

Mãos estendidas

Boca miúda, franzida. Dentes quebrados, outros amarelos. Murmurava canções desesperadas, a mão estendida. Olhos desenhados como mapas de cansaço. Senhora negra, quase setenta anos, provavelmente. Percorria ruas e mesas, trocando caminhadas por sobrevivência. Vestido florido, transitava entre olhares áridos e terras asfaltadas. Apanhava silêncios. Balanços de cabeça negando trocados. Eu tomava café e lia Federico García Lorca. A poesia dele desfolhava paisagens distantes e, de repente, colocava aquela senhora no centro da mesa. Sua boca franzida tocava meus olhos. Antes dela, eu também tentava a sorte — jogava na loteria a esperança. O jogo era do meu pai. A chance, mínima. Voltei para casa carregando nos braços o peso daquela boca. Ela não fazia poemas. Nunca leria Lorca. Naque...
Noticiário da Manhã
Literatura

Noticiário da Manhã

Alexandre Lucas Olhos brilhantes, aparentemente atentos, corpo deitado. Era segunda-feira, seis horas da manhã. Parte da cidade se espreguiçava; para outra, o dia já havia começado bem cedo. Apenas um gole de café, a barriga ainda vazia. Os olhos brilhantes, aparentemente atentos, e o corpo deitado estavam ali, na rua. Alguém passou, fisgou a imagem e desapareceu daquela paisagem. Era impossível saber o que acontecera. Restava apenas: olhos brilhantes, aparentemente atentos e corpo deitado. No canto, como quem não quisesse chamar atenção ou atrapalhar o fluxo, mantinha-se inerte. Os mais lentos conseguiam perceber. A cidade está veloz. A violência escorre sobre os olhos, parece natural. O almoço enlatado, as verduras dronadas de agrotóxico e o noticiário — suco de sangue — não ...
Mastigando Rapadura
Literatura

Mastigando Rapadura

Alexandre Lucas Vazio preenchido de ecos do passado. A tarde transbordava ausências, grilos cantavam nos pensamentos. Seu corpo estendido no chão frio da sala dos livros, enquanto o reggae batia a dança das cobras. Lia sobre os tempos de chumbo e a rebeldia das palavras; foices contra balas, poemas fabricados como coquetéis molotovs nos aparelhos da clandestinidade. Sonhos montados sobre esperança, erguidos de braços e assobios. A tarde escancarava o desejo das multidões, mas só as lembranças compareciam. Ali, na trincheira da sala dos livros, tentava desenterrar o texto. Na guerrilha, há momentos sem pares nem água – às vezes é preciso recuar sete estrelas e sete sóis, para nunca mais voltar. À tarde, que já poderia ser noite, prosseguia. Lá fora, o filho desbravava a cidade em f...
Escola Pública como farol para políticas de editais culturais
Literatura

Escola Pública como farol para políticas de editais culturais

Alexandre Lucas A política de editais no campo da cultura tem sido uma das principais formas de viabilizar o acesso a recursos públicos para o fomento cultural no país. Entretanto, tais recursos ainda estão distantes de atender às demandas sociais. A relação entre o que é ofertado pelo Estado e o que é demandado pela sociedade apresenta um contraste que evidencia nossa distância de um "SUS da Cultura" — objetivo que não deve ser descartado, mas, ao contrário, reforçado. Estamos em um processo político e jurídico para fazer a engrenagem do Sistema Nacional de Cultura funcionar com a responsabilização da União, dos estados e dos municípios. A Lei Aldir Blanc I, a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) são exemplos desse processo em curso, alinhadas à regulamentação do ...
Casas de sopros
Literatura

Casas de sopros

Alexandre Lucas Mergulhar no sol seria mais fácil quer mentir. Trair-se é um ato doloroso. Antes de iniciar a batalha, Pablo Neruda é lido – Para Nascer nasci. Intenso e cheios de códigos, desbravava o desejo de viver. Mainha está distante, Neruda nas mãos. Não saberia dizer o quanto a ama, mas queria a intensidade das palavras do poeta para embalar o seu amor, ou simplesmente, um abraço silencioso de quarenta e seis anos. Não seria o suficiente. Painho acordou cedo, feito menino, foi comprar um brinquedo para gente grande – uma máquina de chanfrar couro. Ainda sonha em calçar pessoas. A máquina de chanfrar serve para amolecer o couro, dar poesia no gingado da pele morta. O filho, norte e poema maior, tem seu jeito próprio de declarar amor. Hoje, não almoçou com o pai, mas já t...
Camisa engelhada
Literatura

Camisa engelhada

Alexandre Lucas Acordou às duas horas, achando que já eram quatro. Tentou em vão dormir novamente, reboleou na rede, mas nada de pregar os olhos. Seguiu a rotina: tomou banho, colocou água para ferver com depois ovos, aproveitou a mesma água para fazer o café. Tomou dois goles de café e seguiu para a academia: vinte minutos de esteira, depois as outras máquinas—dia de perna. Voltou escutando um podcast sobre literatura. Trocou de roupa para ir ao trabalho, antes tomou um café no pai como um pedido de bênção.   Rumo ao trabalho, vai lendo um livro de poesia para ver quem passa nas páginas. Quer se desligar do mundo e dos seus problemas. Por alguns instantes, se conecta à paisagem do livro.   Perderam a chave, porta fechada. Espera alguns minutos para bater o pon...
Entre ninjas e bruxos sonhou
Literatura

Entre ninjas e bruxos sonhou

Alexandre Lucas Quando criança se encontrava enrolado nas histórias de ninja. Fazia suas armas de lata e cabos de vassoura. Imaginava escalando paredes e desaparecendo com bombas de fumaça. Se via derrotando com chutes e socos aqueles que atacavam a sua felicidade. Ser ninja nutria a dimensão do poder e da autodefesa. Mas também queria ser bruxo, místico - ou qualquer outra palavra equivalente para as pessoas que lidam com coisas que não se explicam a partir da ciência. Buscava conhecer o poder das pirâmides, das rochas, dos chás, das orações e das simpatias. Na verdade, buscava fórmulas mágicas para transformar a vida, já que ela não é algo fácil de lidar. A gente é sempre multiplicidade de desejos. Nunca conseguimos ser apenas um anseio. Vamos sendo muitos em um só corpo. Ser ni...
As cartas sem futuro
Literatura

As cartas sem futuro

Alexandre Lucas Deixo uma carta junto às contas do mês. Coloquei no envelope, passei cola e propositalmente ignorei o destinatário. Talvez nunca seja lida, se perca na correria e no amontoado de coisas que vamos juntando ao longo da vida.   Na vida, juntamos pedaços de acontecimentos e de coisas. As cartas são coisas e acontecimentos que atravessam o mundo e nossas paredes.   Parece que escrever tem sido a companhia mais tranquila, tenho pensado insistentemente em casar. As palavras são mais que uma transa casual e não têm hora para acontecer. Às vezes, de madrugada, acordo cheio de vontades para dançar; outras, ao meio-dia, o sol escorrendo pelas pálpebras e as palavras deslizando na inquietude dos pensamentos.   Escrevo cartas, algumas com destinatários, a...
O filho da costureira e do sapateiro
Literatura

O filho da costureira e do sapateiro

Alexandre Lucas O filho da costureira e do sapateiro escreve um diário aberto — não como As Veias Abertas da América Latina, de Galeano, mas próximo das pinturas de Frida, que, ao falar de si, falava do mundo. “Nunca pintei sonhos, só pintei a minha própria realidade”, dizia Frida Kahlo, temperada pelo seu tempo e pelas doses dos seus suspiros.  As realidades são distintas. Dores maiores ou menores não existem: existem dores. O filho da costureira e do sapateiro codifica em palavras espremidas as rupturas da vida; canto e grito se misturam, óleo e água se enfrentam. As borboletas se transformam em esperança em alguns momentos, porque nem tudo é tristeza. Segundo a moça que encontramos todas as quartas-feiras, por meia hora, numa sala de meia-luz e com um sofá confortável,&nbs...