Tag: Alexandre Lucas

O pombo
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O pombo

Alexandre Lucas Parado diante do vai e vem dos carros, mais de vinte e nove minutos de espera. A impaciência quase transbordando pela cara. O trânsito das cinco da tarde é uma fila de desistência. Precisava apenas comprar o pão. Impossível de passar. Os carros transitavam num fluxo interminável. Era capaz do pão ficar duro. Precisava andar para diluir os problemas, mas os carros estavam sendo as pedras no meio do caminho. Faltava Drummond e não se tinha horizonte sem alvo para jogar pedras. A demora foi tanta que desistiu do pão. Andou sem planejar os caminhos e parou diante dos pombos, observou seus gestos e, impedido de voar, escreveu. Voltando para casa, o engarrafamento continuava, a padaria tinha fechado. Trazia um pombo debaixo do braço. Sobre o autor: Alexan...
O tamanho da reza
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O tamanho da reza

Alexandre Lucas -Rezei só o básico e fui dormir.   Comentou seu Raimundo, deixando dúvida sobre o tamanho de uma reza. A noite, ele ocupa a calçada para encontrar conversas, ver gente e encurtar o tempo para o dia seguinte.   Todo dia, que deve ter um santo, está Raimundo como um poste na calçada. Ver quem sobe e desce. Quem faz questão de falar e de calar.   Gosta de conversar sobre as histórias de antigamente, relembrar a vida alheia misturada com a sua.   Guarda tantas memórias que se perde entre elas. Troca personagens e tempos; às vezes, uma história entra noutra, refazendo coisas que não existiram.   Com oitenta anos, se perde e se guarda lembranças impossíveis de calcular. Raimundo entende de invenções, refaz histórias e cria...
Ventania em liquidificador
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Ventania em liquidificador

Alexandre Lucas Deixou uma vela acesa na mão do poema. A noite apagou as estrelas e a lua. Pela madrugada foi à praça, observou a angústia dos bancos vazios, apenas o vento falava.   Abraçou-se no vento para dançar uma valsa. Beijou a poeira com a língua nos céus. Tentava preencher a praça cheia dos seus vazios.   Era madrugada, o vento se conjugava com o frio. A maçã mordida se apresentava no meio da praça, rebolava com o vento.   — Quem quer maçã mordida?   Perguntava a si esbarrando no vento. O poema queimou durante a madrugada. Soprou o cadáver das palavras e mesmo assim não se livrou da poesia.   Sobre o autor: Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho.
Açougue do Pinto
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Açougue do Pinto

Alexandre Lucas Pinto vende cerveja e tira-gosto de carne de mulher. Nunca o vi vendendo outra coisa. Tudo está à venda: o silêncio, o ar, a bagunça, o corpo, o amor. Na esquina da rua mais distante, também se vende mentira, Coca-Cola e um pedaço de felicidade. Às vezes, é possível comprar até um lote no céu. Entre mesas velhas de madeira e um jukebox desmantelado — aquele aparelho em que se escolhe música com fichas —, lá está Pinto, com um sorriso pela metade. As mulheres se espalham pelas mesas, bebem, conversam, ouvem histórias de solidão, piadas improvisadas, porradas de palavras e nada com nada. Marcam o prazer no relógio e anotam com rostos cansados refletidos no espelho quebrado, mais um dia. Neguinha, a carne mais nova de Pinto, já tem 40 anos. Chegou há dois dias. É n...
Na casa da vó, tinha mais estátua de santo que arroz
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Na casa da vó, tinha mais estátua de santo que arroz

Alexandre Lucas — Alguém vai descer? Desceu o inesperado. Se viram, mas não se olharam. Nenhuma palavra foi trocada; o silêncio se fez morto — o contrário poderia ser o fim. Andar ficou arriscado: as ruas são as mesmas, mas os lugares mudaram. Quando sai de casa, se benze. Não toma só banho não, mas parece que só o banho faz efeito. Em toda saída, pede a bênção ao pai — que nunca abençoa menos que duas vezes. Antes era apenas uma; depois que foi ameaçado de morte, o pai reforçou a bênção. Pareciam oito anos, mas não passavam de nove meses. Na ditadura, os dias são mais longos, e nunca se está preparado para jogar o corpo na rua. Os olhos correm mais que as pernas, e o balançar das folhas pode ser uma grande carreira. Desceu a ladeira. Entrou na primeira porta, comendo interr...
Bodega e Trovões
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Bodega e Trovões

Alexandre Lucas Na bodega ao lado tem de tudo: farinha, prego, cimento, ração, fio, banana, carne, caderno, remédio. Abre todos os dias, inclusive nos feriados e dias santos. Dia santo no Brasil é data para quem é católico, mas todo mundo se dá bem.   Acordou com a bodega na cabeça. Carregava mais coisas que a bodega. Afinal, nasceu quase no final da ditadura, acumulou nesse tempo poeira, enlatados, canções de fúria, algumas luas e dores de cabeça.   A bodega ao lado fica imóvel, aguenta o entra e sai das pessoas. Nos domingos à tarde, fecha. Já ele não pode fechar, fica aberto mesmo. quando consegue dormir.   Ele não tem bodega; tem um tiroteio. A bodega parece pacata, apesar dos fiados e dos esquecidos.   O Brasil talvez seja uma bodega cheia ...
Noite quente e unhas roídas
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Noite quente e unhas roídas

Alexandre Lucas Os gatos na rua olham para a varanda. Toca Caetano. A baiana de Ilhéus manda entusiasmo e pergunta sobre as trincheiras de luta. O capitalismo distancia os abraços e o café. Os gatos comem coração de boi jogado da varanda. A baiana diz que as unhas cresceram e conseguiu pintá-las com "Noite Quente", um roxo intenso de uma marca de esmalte. Unhas pintadas são difíceis de roer. Neblina. Os gatos procuram abrigo sob as portas. A baiana comenta que Ilhéus está frio. Fala que há dias difíceis em que sente se esvaziar, mas afirma: "É preciso resistir". Lá fora, parece haver uma briga. É final de domingo: nos bares, homens e mulheres cantam em ritmos embriagados. Uma criança chora; outras correm atrás da bola. Quase todas gritam. O filho traz bolo de macaxeira para ...
É na terra que se adubam as roseiras
Literatura

É na terra que se adubam as roseiras

Alexandre Lucas Faz silêncio entre os barulhos. Abre a boca como quem quer abocanhar o mundo — é só um bocejo de quem não dorme. Põe João Bosco pra cantar às três da manhã. Um homem cruza a praça a caminho do mercado, vai descarregar caminhões de frutas. O gato deixa marcas no cimento fresco — gato fresco. O Cristo de braços abertos continua iluminado na praça onde os pombos dormem. Os galos cantam. Trégua pra João Bosco. Motores de carros lembram que a cidade não dorme toda. Três e quarenta e dois: toma goles de café, come uma banana, enxuga lágrimas, assoa o nariz. Chama Nando Reis. Toca Alô. Os galos ainda cantam, agora com o latido dos cachorros. Tudo parece fora do lugar. O ventilador parado tem ar de querer falar. Os desenhos no quadro observam os movimentos; as ma...
A saudade não se mata
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A saudade não se mata

Alexandre Lucas Não! Já era tarde. A menina de sete anos brincava de ir ao céu na amarelinha feita de carvão, na calçada da casa abandonada. Tinha ali suas bonecas e esperava as amigas. A mãe observava, de olhos brilhantes, a filha brincar. A menina de sete anos era a primeira, a mais velha; as outras tinham cinco e três anos. Mesmo pai. Elas dormiam. Sete vezes foi ao céu. Não errou nenhuma vez. A polícia chegou. A menina parou. Quando se vê polícia por aqui, os olhos crescem, as pessoas se escondem, as crianças ficam com o coração igual a carne moída. — Menina! — disse a polícia. A menina correu, braços abertos, como Jesus Cristo. Pei, pei, pei. A bala acertou a aflição da menina que corria para abraçar o pai. Mãe e pai, mãos na cabeça, narizes fungando, olhos ...
Ando nu pelas manhãs
Literatura

Ando nu pelas manhãs

Alexandre Lucas Passou a noite remoendo as páginas de um livro velho, roídas e amareladas, temperadas por traças e fungos. O livro trazia receitas, mas pouco importava o que ele continha; entrar na contramão dos pensamentos era mais urgente. Escreveu durante a madrugada, umedecendo e atravessando os papéis. O livro velho servia de encosto. Espremia a velocidade da dor nas folhas. Amanheceu frio e ventoso. Onze páginas na mão, uma carta para não ser entregue. Releu, acendeu um incenso de rosa branca, tirou os óculos para enxugar as lágrimas. Tocava Coragem de Castello Branco, baixinho. Onze páginas na mão, procurava os erros que a gramática nunca encontraria. Diante da varanda, avistava o verde das folhas da chapada. Os pássaros cantavam e bicavam a banana pendurada no telh...