Tag: Alexandre Lucas

Bodega e Trovões
Literatura

Bodega e Trovões

Alexandre Lucas Na bodega ao lado tem de tudo: farinha, prego, cimento, ração, fio, banana, carne, caderno, remédio. Abre todos os dias, inclusive nos feriados e dias santos. Dia santo no Brasil é data para quem é católico, mas todo mundo se dá bem.   Acordou com a bodega na cabeça. Carregava mais coisas que a bodega. Afinal, nasceu quase no final da ditadura, acumulou nesse tempo poeira, enlatados, canções de fúria, algumas luas e dores de cabeça.   A bodega ao lado fica imóvel, aguenta o entra e sai das pessoas. Nos domingos à tarde, fecha. Já ele não pode fechar, fica aberto mesmo. quando consegue dormir.   Ele não tem bodega; tem um tiroteio. A bodega parece pacata, apesar dos fiados e dos esquecidos.   O Brasil talvez seja uma bodega cheia ...
Noite quente e unhas roídas
Literatura

Noite quente e unhas roídas

Alexandre Lucas Os gatos na rua olham para a varanda. Toca Caetano. A baiana de Ilhéus manda entusiasmo e pergunta sobre as trincheiras de luta. O capitalismo distancia os abraços e o café. Os gatos comem coração de boi jogado da varanda. A baiana diz que as unhas cresceram e conseguiu pintá-las com "Noite Quente", um roxo intenso de uma marca de esmalte. Unhas pintadas são difíceis de roer. Neblina. Os gatos procuram abrigo sob as portas. A baiana comenta que Ilhéus está frio. Fala que há dias difíceis em que sente se esvaziar, mas afirma: "É preciso resistir". Lá fora, parece haver uma briga. É final de domingo: nos bares, homens e mulheres cantam em ritmos embriagados. Uma criança chora; outras correm atrás da bola. Quase todas gritam. O filho traz bolo de macaxeira para ...
É na terra que se adubam as roseiras
Literatura

É na terra que se adubam as roseiras

Alexandre Lucas Faz silêncio entre os barulhos. Abre a boca como quem quer abocanhar o mundo — é só um bocejo de quem não dorme. Põe João Bosco pra cantar às três da manhã. Um homem cruza a praça a caminho do mercado, vai descarregar caminhões de frutas. O gato deixa marcas no cimento fresco — gato fresco. O Cristo de braços abertos continua iluminado na praça onde os pombos dormem. Os galos cantam. Trégua pra João Bosco. Motores de carros lembram que a cidade não dorme toda. Três e quarenta e dois: toma goles de café, come uma banana, enxuga lágrimas, assoa o nariz. Chama Nando Reis. Toca Alô. Os galos ainda cantam, agora com o latido dos cachorros. Tudo parece fora do lugar. O ventilador parado tem ar de querer falar. Os desenhos no quadro observam os movimentos; as ma...
A saudade não se mata
Literatura

A saudade não se mata

Alexandre Lucas Não! Já era tarde. A menina de sete anos brincava de ir ao céu na amarelinha feita de carvão, na calçada da casa abandonada. Tinha ali suas bonecas e esperava as amigas. A mãe observava, de olhos brilhantes, a filha brincar. A menina de sete anos era a primeira, a mais velha; as outras tinham cinco e três anos. Mesmo pai. Elas dormiam. Sete vezes foi ao céu. Não errou nenhuma vez. A polícia chegou. A menina parou. Quando se vê polícia por aqui, os olhos crescem, as pessoas se escondem, as crianças ficam com o coração igual a carne moída. — Menina! — disse a polícia. A menina correu, braços abertos, como Jesus Cristo. Pei, pei, pei. A bala acertou a aflição da menina que corria para abraçar o pai. Mãe e pai, mãos na cabeça, narizes fungando, olhos ...
Ando nu pelas manhãs
Literatura

Ando nu pelas manhãs

Alexandre Lucas Passou a noite remoendo as páginas de um livro velho, roídas e amareladas, temperadas por traças e fungos. O livro trazia receitas, mas pouco importava o que ele continha; entrar na contramão dos pensamentos era mais urgente. Escreveu durante a madrugada, umedecendo e atravessando os papéis. O livro velho servia de encosto. Espremia a velocidade da dor nas folhas. Amanheceu frio e ventoso. Onze páginas na mão, uma carta para não ser entregue. Releu, acendeu um incenso de rosa branca, tirou os óculos para enxugar as lágrimas. Tocava Coragem de Castello Branco, baixinho. Onze páginas na mão, procurava os erros que a gramática nunca encontraria. Diante da varanda, avistava o verde das folhas da chapada. Os pássaros cantavam e bicavam a banana pendurada no telh...
Celeste do Gesso
Literatura

Celeste do Gesso

Alexandre Lucas Na beira da calçada estava Celeste. Manhã, carros e pessoas passando. Saia rodada da cor de poeira, blusa azul de alça. Sobe a saia, acocora e mija. Levanta, acende o seu cigarro brabo e coloca uma sacola com mantimentos na cabeça e segue. A mão estendida de Celeste vai abordando quem cruza o seu caminho. Boca sem dentes, mastigando fumaça, dispara:— Me dê dois real. Celeste se aproxima como quem vai beijar, de tão próxima que fica. Visita a Padaria Nobre dez vezes ao dia. Aborda tudo que é de gente, quase beijando. Apenas as crianças ficam de fora.— Me dê dois real. Sai Celeste todos os dias, revirando o centro da cidade com a sua mão estendida. Caras franzidas, xingamentos e olhares de abraços. Às vezes, umas moedas; com sorte, dois reais. Final d...
Os dois dedos na garganta
Literatura

Os dois dedos na garganta

Alexandre Lucas Engasgou-se com alfinetes. Tarde de domingo, os lençóis secam ao sol. A criança vai para algum lugar, pendurada no tuntum do pai. O bar tocava a música de retalhar corações; duas mesas e olhares perdidos se encontravam por ali. Na calçada, o senhor de cabeça branca limpa as unhas dos pés com uma peixeira, enquanto, no pé da porta, a mãe catava os piolhos da filha. Os vestígios das pipas balançam presos nas árvores, e os meninos sobem para colher azeitonas. A paisagem é uma calmaria. Engasgado, no último andar: portas fechadas, janelas abertas. Um blues para acalmar e esconder a agonia. Os alfinetes travam as palavras, furam a garganta. Alguém bate na porta — é o vendedor de orações. O silêncio responde; o vendedor segue outro caminho. Engasgado, enfia ...
Periferia morta, povo vivo
Política

Periferia morta, povo vivo

Alexandre Lucas A periferia não é para ser espaço de orgulho. Ela surge como consequência desastrosa e perversa do modelo capitalista. É fruto das relações de exploração e opressão. A distribuição desigual da economia estratifica sócio espacialmente. De um lado, os excluídos e, do outro, os incluídos; de um lado, os que podem comprar os direitos e, do outro, os que têm os direitos negados. Romper com a romantização da periferia é uma necessidade humanitária. A estética periférica ou os estereótipos da periferia não devem ser percebidos como instância limitante; pelo contrário, devem servir como ponto de partida para abarcar novos horizontes e reafirmar que outra sociabilidade é possível, baseada no direito coletivo do espaço urbano, com redução dos impactos ambientais, socialização d...
Bilhete para pequena flor
Literatura

Bilhete para pequena flor

Alexandre Lucas Lua crescente. O cheiro do cachimbo massageava como mãos. O chão era o assento da conversa. Pés descalços. Copos de barro. Luzes apagadas. O brilho da boca pronunciava dança. Bebia o espremido do limão com o gosto esparramado da hortelã. A meia-noite se aproximava e o pôr do sol não foi adiado. Dançava consagrando o instante, ritual sagrado do afeto. O cheiro das ervas percorria os olhos, fazendo rios na imaginação. Os dedos andavam com calma, tentando escutar a respiração; provável que quisesse ler a palma da alma. Vasculhou as pastas para sentir as cores, as formas e as texturas. Escolheu três imagens e deixou um rio, cheio de pequenas flores, que vão como barcos no balanço das águas. Julho é frio, venta e pede abraço. As ervas para o chá estão guardadas, espe...
O velho câmera
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O velho câmera

Alexandre Lucas Buscava respostas para as preocupações como se a madrugada respondesse alguma coisa. Os cachorros latiam para cada mexido de gente. O velho por trás da porta segurava as suas incertezas e tentava colher alguma novidade, um simples bom dia para conforta a sua solidão. O homem corcunda passa cedo para ir ao mercado, junta lavagem para os porcos. A bodega abre as seis horas. Os cachorros correm. O homem ensaca frangos dentro da D20. A mulher passa para comprar o pão fiado, paga quando puder. O velho por trás da porta monitora o movimento da rua, o homem câmera. Os pombos buscam os milhos que restaram, caminham como velhas mancas. A senhora que acorda cedo espana a parede para tentar escutar melhor as conversas. O velho por trás da porta chora. Já não tem mãe, nem p...