Tag: Alexandre Lucas

Celeste do Gesso
Literatura

Celeste do Gesso

Alexandre Lucas Na beira da calçada estava Celeste. Manhã, carros e pessoas passando. Saia rodada da cor de poeira, blusa azul de alça. Sobe a saia, acocora e mija. Levanta, acende o seu cigarro brabo e coloca uma sacola com mantimentos na cabeça e segue. A mão estendida de Celeste vai abordando quem cruza o seu caminho. Boca sem dentes, mastigando fumaça, dispara:— Me dê dois real. Celeste se aproxima como quem vai beijar, de tão próxima que fica. Visita a Padaria Nobre dez vezes ao dia. Aborda tudo que é de gente, quase beijando. Apenas as crianças ficam de fora.— Me dê dois real. Sai Celeste todos os dias, revirando o centro da cidade com a sua mão estendida. Caras franzidas, xingamentos e olhares de abraços. Às vezes, umas moedas; com sorte, dois reais. Final d...
Os dois dedos na garganta
Literatura

Os dois dedos na garganta

Alexandre Lucas Engasgou-se com alfinetes. Tarde de domingo, os lençóis secam ao sol. A criança vai para algum lugar, pendurada no tuntum do pai. O bar tocava a música de retalhar corações; duas mesas e olhares perdidos se encontravam por ali. Na calçada, o senhor de cabeça branca limpa as unhas dos pés com uma peixeira, enquanto, no pé da porta, a mãe catava os piolhos da filha. Os vestígios das pipas balançam presos nas árvores, e os meninos sobem para colher azeitonas. A paisagem é uma calmaria. Engasgado, no último andar: portas fechadas, janelas abertas. Um blues para acalmar e esconder a agonia. Os alfinetes travam as palavras, furam a garganta. Alguém bate na porta — é o vendedor de orações. O silêncio responde; o vendedor segue outro caminho. Engasgado, enfia ...
Periferia morta, povo vivo
Política

Periferia morta, povo vivo

Alexandre Lucas A periferia não é para ser espaço de orgulho. Ela surge como consequência desastrosa e perversa do modelo capitalista. É fruto das relações de exploração e opressão. A distribuição desigual da economia estratifica sócio espacialmente. De um lado, os excluídos e, do outro, os incluídos; de um lado, os que podem comprar os direitos e, do outro, os que têm os direitos negados. Romper com a romantização da periferia é uma necessidade humanitária. A estética periférica ou os estereótipos da periferia não devem ser percebidos como instância limitante; pelo contrário, devem servir como ponto de partida para abarcar novos horizontes e reafirmar que outra sociabilidade é possível, baseada no direito coletivo do espaço urbano, com redução dos impactos ambientais, socialização d...
Bilhete para pequena flor
Literatura

Bilhete para pequena flor

Alexandre Lucas Lua crescente. O cheiro do cachimbo massageava como mãos. O chão era o assento da conversa. Pés descalços. Copos de barro. Luzes apagadas. O brilho da boca pronunciava dança. Bebia o espremido do limão com o gosto esparramado da hortelã. A meia-noite se aproximava e o pôr do sol não foi adiado. Dançava consagrando o instante, ritual sagrado do afeto. O cheiro das ervas percorria os olhos, fazendo rios na imaginação. Os dedos andavam com calma, tentando escutar a respiração; provável que quisesse ler a palma da alma. Vasculhou as pastas para sentir as cores, as formas e as texturas. Escolheu três imagens e deixou um rio, cheio de pequenas flores, que vão como barcos no balanço das águas. Julho é frio, venta e pede abraço. As ervas para o chá estão guardadas, espe...
O velho câmera
Sem categoria

O velho câmera

Alexandre Lucas Buscava respostas para as preocupações como se a madrugada respondesse alguma coisa. Os cachorros latiam para cada mexido de gente. O velho por trás da porta segurava as suas incertezas e tentava colher alguma novidade, um simples bom dia para conforta a sua solidão. O homem corcunda passa cedo para ir ao mercado, junta lavagem para os porcos. A bodega abre as seis horas. Os cachorros correm. O homem ensaca frangos dentro da D20. A mulher passa para comprar o pão fiado, paga quando puder. O velho por trás da porta monitora o movimento da rua, o homem câmera. Os pombos buscam os milhos que restaram, caminham como velhas mancas. A senhora que acorda cedo espana a parede para tentar escutar melhor as conversas. O velho por trás da porta chora. Já não tem mãe, nem p...
Dorinha foi pra rua
Literatura

Dorinha foi pra rua

Alexandre Lucas Abria Eduardo Galeano – Dias e Noites de Amor e Guerra. Peço um café. Sou interrompido com um bom dia. Uma companheira de luta, cujo nome desconheço, me oferece um exemplar do A Verdade. Antes de comprar, conversamos rapidamente. Pedi dois exemplares, mas, como boa militante, só restava um. Saiu, deixando pólvoras de esperança. Era manhã de sábado. Aos sábados, visito o centro da cidade para bisbilhotar e fazer as apostas do meu pai, que sonha em ganhar na loteria. Aproveito sempre para tomar café e ler algumas páginas; às vezes, ganho companhia, que não atrapalha em nada a leitura. No balcão, leio A Verdade entre goles de café. Paro a leitura. A mulher pede uma dose sem equilibrar as palavras e as pernas. Pergunta se posso pagar uma dose; ofereço ...
Parede laranja
Literatura

Parede laranja

Alexandre Lucas Fecho o livro. O menino olha fixamente para a parede cheia de palavras, sua mão segura o queixo e tapa a boca. As palavras não fazem sentido algum quando não se sabe ler.   O menino até tentava juntar as letras para soletrar nexos.   A parede recebe a fúria e a ternura, as dúvidas e os desencontros. É permitido escrever na parede laranja, uma lousa transformada num confessionário público, a censura quase não existe. A gramática tem regras, e a linguagem é uma liberdade rodeada de grades. A parede laranja é um começo para romper com as palavras engasgadas no medo e nos arames farpados das normas do silêncio.   O menino que lia o que não sabia descrever já não estava mais na sala, impossível quantificar as suas leituras.   A parede...
Maria talvez não saiba
Literatura

Maria talvez não saiba

Alexandre Lucas - Ladrão, ladrão. Gritava, o bodegueiro com o facão em punho, atacando o balcão. Isso aconteceu quinta-feira, estava dormindo. Acordo atoado. Pego o celular: “Policial militar é morto a tiros ao sair de partida de futebol”. Leio a matéria: estava acompanhado da esposa. Os assassinos não foram identificados. Vários tiros, alguns na cabeça. De acordo com Clarice Lispector: “Uma bala bastava. O resto era vontade de matar”. Escuto Sabotage e Jorge Mautner, próximo do meio-dia. Hoje é domingo, tento criar minha rotina, lá fora tem jogo, mas não queria soar assim, queria conversas leves e massagens fáceis. O bodegueiro ainda mantém a bodega aberta. No domingo, vende mais e as notícias das vidas alheias preenchem as prateleiras. Sabotage e Jorge Mautner canta...
Voadores
Literatura

Voadores

Alexandre Lucas Pássaro grande que conheço é o Urubu. A águia que nunca vi, aparecia na TV, parece que tudo que não é nosso, aparece como sendo na televisão. Por exemplo, é difícil ver um filme nacional nas emissoras do Brasil. Os Urubus os encontravam todas as manhãs. Eles ficavam no muro amarelo do prédio onde foi o Cabaré do Vitorino, aliás a boate, como era chamada. Ficavam ali sem império, vistoriando as sobras de comidas, as carnes em putrefação. Menino, passava horas admirando os Urubus. A linha do trem nos dividia, o trânsito era restritivo, nem todo mundo ultrapassava a linha, os prazeres da carne estavam tabelados logo a frente. Os Urubus já não os vejo por esses trechos. O muro amarelo já é outro, por ali, pelas manhãs escuto vozes de crianças, espero que elas  ...
A Prefeitura e o Sítio Urbano do Gesso
Política

A Prefeitura e o Sítio Urbano do Gesso

Alexandre Lucas O Sítio Urbano do Gesso é tratado pela Prefeitura Municipal do Crato como um projeto particular de uma organização, embora tenha sido reconhecido pela Lei Municipal nº 3.612/2019. O Sítio demanda da gestão municipal cuidados, orientação e fomento para o desenvolvimento dessa área verde urbana, localizada às margens da linha férrea. A lei, proposta pelo Coletivo Camaradas, prevê que essa experiência seja replicada em outras áreas da cidade.   No entanto, o que se observa é a negligência total dos dois últimos prefeitos.   Vejamos:   - Em 2023, o Coletivo Camaradas apresentou ao Conselho Municipal de Meio Ambiente e Mudança do Clima um projeto para revitalizar parte do Sítio. Aprovado pelo Conselho, o projeto não obteve resposta da Pr...