Tag: Alexandre Lucas

Sou uma mentira
Literatura

Sou uma mentira

Por Alexandre Lucas* Já confundo todos os olhares e desconheço todas as luas. Construo versos para trincar certezas e já não me deito na cama para enganar o coração. É tempo de amor, porque ele nunca sai de moda. Sou toda mentira que o amor é capaz de fazer. Inventei na palavra que o amor era maior que a imensidão do universo e previsivelmente mais quente que o sol, fui dogmática e professei que o amor era eterno. Lógico que dopada e embriagada pela realidade alienante. Eu espedaçada, fui triturada, mas o amor nos faz mosaico, um todo formado de pedaços. Enquanto me deito, não espero nada, mentira, estou esperançando e de vez em quando sonho, nem tudo é desespero. Ainda vejo estrelas e mares nos olhos. Estou vivinha, ainda, assim quero ficar.  Porque dizem por aí que o amor é...
<strong>Denunciante</strong>
Literatura

Denunciante

Por Alexandre Lucas* O som da respiração faz poesia entre os corpos. Hoje, a lua tem sol e o chá é afrodisíaco. Escrevo devorando a imaginação. Vou vasculhando as palavras e mordendo os lábios no bailado de imagens. Solto um sorriso e me dano a escrever, como quem quer despir o papel, sentir a  carne, o suor escorrendo entre as linhas, o  ventre molhado, olhos bambos,  sons  desequilibrados,  letras bêbadas e um convite para daqui a pouco. É apenas o papel denunciante da intensidade humana. Incêndio, a poesia está em brasas e a razão resolveu se esconder. Contínuo escrevendo, buscando intervalos da imaginação do que não existiu, mas tudo existe. Saio, dou algumas voltas, talvez quisesse estar numa canoa sendo levado pela pele do rio, ou numa trilha sentindo o...
Catar sonhos
Literatura

Catar sonhos

Por Alexandre Lucas* Um galpão escuro, pouca luz, cabeças despontavam como fotografias preto e branco. Na luz, a ferrugem se destacava nos rostos mais claros. Meio da semana, quarta-feira, as cinzas se misturavam ao suor e as roupas de cores perdidas. O menino pesa as caminhadas da semana, despeja o saco na balança e verifica que consegue comprar sete pães. Abre um sorriso de lábios fechados para esconder os dentes quebrados. O menino segue sua procissão, vasculha e rever a cidade procurando novos pães. Em dias de sorte, consegue menos sol, mas a média não ultrapassa os sete pães. Outro dia vi o mesmo menino com roupa limpa, cantando sonhos e me ensinando coisas de computador. Comemos alguns pães juntos, inclusive, tivemos dias em que também comemos bolo recheado com chocolate e r...
Como enterrar algozes?
Literatura

Como enterrar algozes?

Por Alexandre Lucas* A estátua de Nossa Senhora de Fátima perseguia o seu olhar e o desejo de matar consumia os seus caminhos. Era segunda-feira, já se tinha passado metade do ano e, naquele dia, a sua madrugada foi fábrica de ódio e alucinações. Tomou um dedo de café e mastigou perversidade. Acendeu seu cigarro, tragou apressadamente como se quisesse encher os pulmões de coragem. Fumou cinco cigarros, um seguido do outro. Cuspiu no chão, esfregou o cuspe com seu sapato empoeirado, como quem quer tirar manchas do chão. Saiu, se benzeu e levou nossa senhora no olhar. Carregava por debaixo da calça uma falsa verdade de escritura da propriedade alheia e um revólver para demarcar os seus devaneios.  Matou sem balas os caminhos. Fez a barriga tremer. Todas as noites, durante anos ...
Sinais de desconfiança
Literatura

Sinais de desconfiança

 Por Alexandre Lucas Acabei de almoçar, a companhia estava mais deliciosa do que o almoço. Cozinho pouco e, de vez em quando, acerto. O meu amor veio só almoçar, é uma raridade almoçamos juntos: hoje foi um dia de sorte. Quando ele saiu, fui para varanda, assistir de camarote com as roseiras o carnaval da comunidade.   Por aqui a calmaria se apresenta, dando sinais de desconfiança. Vou recolhendo as imagens: um gato branco com heterocromia caminha lentamente, as crianças se melam com goma, os lençóis amarelos da vizinha estão estendidos no varal da rua, nas calçadas as senhoras de cabelos brancos tricotam conversas. Os carros e motos da polícia militar desfilam pelas ruas. Os policiais fazem pose para serem fotografados com armas em punho e rostos de perversidade, e...
Rostos Celestes
Literatura

Rostos Celestes

Por Alexandre Lucas* São quatro rostos azuis, poderia ser qualquer outra cor, mas escolhi o azul. Rosto azul, acredito que só pintado mesmo. Ainda não estão prontos, são só esboços, são similares pelo formato. Tentei fazer parecido comigo, mas sei que sairão bem diferentes. Gosto de imagens deformadas, sem seguir padrões: olho maior que outro, a boca maior que a cabeça e por aí vai. Isso não significa que descarto a perfeição, mas é porque sou ruim mesmo em perfeição. Fico pensando onde colocar quatro rostos, apesar de não estarem prontos, acredito que não serão alegres, no máximo sérios. O que já é um problema, as coisas sérias dão medo. O casamento ou ter uma filha, por exemplo, é algo muito sério, as pessoas morrem só de medo. Acho que esses rostos não cabem na casa em que divi...
Banana
Literatura

Banana

Por Alexandre Lucas* Primeiro dia de carnaval. Resta-me uma dúzia de bananas, pego seis e coloco no liquidificador, junto com leite e açúcar. Liquidifico as bananas, tomo lentamente, olhando os gritos das crianças que não vejo. Sei que se melam, devem estar brancas, as crianças pretas; outras, sentem fome de amor e de comida. Sobram-me, ainda, seis bananas, se passarem do tempo ficarão pretas, mas é carnaval e pouco importa as bananas que tenho. Passarei o carnaval com minhas bananas, talvez coma todas, mas é provável que alguma possa apodrecer, já estão bem maduras: é o que atestam as suas cascas. Dizem que as pessoas ficam velhas quando começam aparecer os primeiros cabelos brancos, apesar de não ser uma regra geral. Nas bananas maduras começam aparecer pingos pretos em suas cas...
<strong>Nossos porões</strong>
Literatura

Nossos porões

Por Alexandre Lucas* Hoje não quero economizar desaforos. A paciência destemperou, muito sal, muito doce. Vou pichar os muros da cidade, esmurrar as paredes, escancarar as feridas abertas da América Latina e do meu coração. Sairei sem destino, conexão e clandestino. Direi gritos para os ventos, derrubarei estátuas. Hoje é dia de pegar a faca e sair abrindo o olho para enxergar o mundo que nos cega. Sangro enxergando melhor, sangro cego, sangro com a América Latina e como os versos doloridos das minhas pisadas. Caminho com o punhal no peito, com a dor na cara e com os dentes afiados. Hoje vou riscar o meu quadrado, cuspir e mijar no chão.  Os versos de agora não serão adoçados, serão servidos amargo, forte e esquecido de açúcar. Hoje não plantarei rosas, nem distribuirei ca...
O ventilador no meio da rua
Literatura

O ventilador no meio da rua

Alexandre Lucas Ainda é cedo para sonhar, dizia o senhor com a camisa aberta e os botões perdidos. Enquanto o pombo com seus passos curtos ousava em roubar a comida do gato, podia não sonhar, mas sabia voar.  Cheia de planos observava o pombo e o senhor descrente.  A ansiedade dava sinais de presença, o único controle que tinha era o da televisão. Na televisão a vida parece ser mais fácil. Tudo é sempre mais bonito: os homens, as roupas, as casas, até a falsidade, mas a vida real é cheia de mondrongos.  Ainda não matei a esperança, apesar dos sinais de cansaço. Ligo o ventilador no meio da rua, já que as árvores foram cortadas e não existe mais um pé de vento. Talvez queira chamar atenção mais do que esfriar o tempo e discordar do senhor, que disse que era cedo para...
<strong>Enquanto dormia</strong>
Literatura

Enquanto dormia

Alexandre Lucas É meia-noite, estou parada, ainda não descobri o caminho de volta, também não sei se quero voltar e nem para onde. Talvez deva seguir. A rua está deserta, a sensação é que sempre estive aqui. A rua é sempre uma prisão sem grandes.  Parada, observo o barulho do silêncio.  Hoje o vestido vermelho está composto, é tecido grosso, não sinto frio. É possível aguentar a noite toda. O gato corre atrás do rato, mas o buraco era bem menor e o gato não entrou. O cachorro late com o vento que arrasta as folhas, enquanto me ocupo com risos.  Vou ficando parada, as coisas parecem que também pararam. O gato, o rato e o cachorro resolveram parar.  Talvez fosse preciso uma explosão para disparar gritos, circular corpos e encontrar soluções.  Não tem expl...