Uns olhos cheios d’água ao ler Conceição Evaristo

Luciana Bessa

Conceição Evaristo é uma dessas escritoras versáteis que primeiro adotou o romance, Ponciá Vicêncio (2003), depois enveredou pelo conto Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), e ainda abraçou o verso: Poemas de recordação e outros movimentos (2017). Ressaltando que desde a década de 90, a mineira publica seus textos nos Cadernos Negros, uma publicação organizada desde o ano de 1978 pelo coletivo Quilombhoje, com o objetivo de dar visibilidade às vozes de autores afro-brasileiros.

Eleita a intelectual do ano pelo Prêmio Juca Pato em 2023, concedido pela União Brasileira de Escritores, Evaristo concorreu a Academia Brasileira de Letras em 2018 para ocupar a cadeira de nº 07, cujo patrono é o poeta condoreiro Castro Alves.  Contudo, ao se recusar a bajulação habitual para obter os votos do “clube de amigos”, a autora de Becos de Memória (2006) perdeu a vaga para o cineasta Cacá Diegues. Na época, fãs da escritora (eu sou uma delas) inconformados com a escolha escreveram cartas manifesto em apoio a ela.  Mas a casa idealizada por um homem negro, Machado de Assis, fundada no ano de 1897, só abriu suas portas para uma mulher negra no ano de 2025 – Ana Maria Gonçalves – autora de Um defeito de cor.

Para dar conta de seus três romances, um livro de poemas e outros três de contos, além de suas várias participações em Antologias (cerca de quinze), Conceição Evaristo cunhou o termo “escrevivência” – “escrever-viver, escrever-se-ver, escrever-se-vendo” – pautado em suas experiências pessoais enquanto mulher negra e periférica.  A escrevivência evaristiana nasceu para incomodar os sonos injustos que ocupam a casa grande.

Um de seus livros mais impactantes para mim chama-se Olhos D’água, publicado em 2014, e agraciado com o Prêmio Jabuti em 2015. Trata-se de uma dessas obras que deixam nossos olhos rasos de água dado às histórias de dor, de luta e de esperança vivenciada por suas personagens.

Em seus quinze contos, os nove primeiros têm protagonistas femininas, os leitores são convidados a se colocar no lugar do outro, a sentir a dor do outro, a se indignar pelo outro, a repudiar o racismo, a desigualdade social, a violência contra a mulher, mas, sobretudo, a ser resistência em uma sociedade em que a literatura tem gênero, raça e cor.

Com uma linguagem fluída, direta, enxuta, solidária, poética, mas sem sentimentalismo, Evaristo nos coloca diante de situações cotidianas, mas que muitos teimam ou fingem não ver alegando que o Brasil não é um país racista.

Enquanto a maioria dos escritores brancos escreve suas narrativas a partir de uma visão exótica e estereotipada sobre a população negra, Conceição Evaristo, escolhe um narrador onisciente que conhece todos os detalhes da história e resolve contá-los a partir da subjetividade, / da memória, / da ancestralidade dos que sentiram na pele a dor de terem suas vidas transformadas/interrompidas pela classe dominante.

Olhos D’água (2014) é uma dessas obras com um leque de narrativas em que a falta de segurança, de saúde, de alimentação, de moradia digna, de afeto, de dignidade impede que um grupo de pessoas exerça plenamente sua cidadania.

No primeiro conto que dá nome ao livro, a narradora-personagem é atormentada por um pensamento: “De que cor eram os olhos de minha mãe?”. Valendo-se da memória, a protagonista procura se conectar à sua genitora, e se lembrar da cor dos olhos dela que foram se perdendo com o tempo, e a busca pela sobrevivência. Ao voltar à sua terra natal, a narradora se dá conta de que os olhos de sua mãe eram como “rios caudalosos sobre a face” e que “a cor dos olhos de sua mãe era cor de olhos d’água”.

No segundo conto – “Ana Davenga” somos apresentados à Ana e seu companheiro Davenga, que tiveram suas vidas ceifadas pela polícia no dia do aniversário dela, enquanto estavam se amando barraco dele, “uma espécie de quartel-general, e ele era o chefe”. No jornal saiu a notícia da morte de um policial.

No terceiro conto, “Duzu-Querença”, observa-se a esperança se renovar a partir de Querença, neta de Duzu, que veio acompanhada pelo pai e pela mãe para a cidade grande para estudar, se tornou prostituta e já velha acabou morrendo de fome na escadaria de uma igreja. Todos os contos com protagonismo feminino ou não, a morte, figurada ou literal, acabam em morte.

Em Olhos D’água (2014), conhecemos mulheres – mães, filhas, esposas, avós, donas de casa, prostitutas – que se destacam pela força de sobrevivência em uma sociedade feita para subalternizá-las e exclui-las.

Em suma, Conceição Evaristo tem sido um dos expoentes contemporâneos do fortalecimento e do crescimento de uma literatura negra que se propõe a não satanizar, ou endeusar o negro, mas retratá-lo como sujeitos de direito e de subjetividade, que tiveram suas vidas destruídas em nome da dominação da classe dominante.

sobre a autora:

Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler (nordestinadosaler.com.br)