Shirley Pinheiro
“Eu já passei por todas as religiões
Filosofias, políticas e lutas
Aos onze anos de idade eu já desconfiava
Da verdade absoluta
Raul Seixas e Raulzito
Sempre foram o mesmo homem
Mas pra aprender o jogo dos ratos
Transou com Deus e com o lobisomem”
(Raul Seixas, 1974)
Além dos prazeres cientificamente comprovados que a música nos proporciona, ouvir Raul Seixas é deparar-me com um turbilhão de sensações um tanto controvérsias. Por um lado, a nostalgia inocente dos meus primeiros anos de vida, quando as letras não faziam tanto sentido e as imagens eram interpretadas literalmente (não me pergunte quantas vezes questionei como Raul chupou uma laranja mecânica e plantou a casca na própria cabeça, como ele canta na versão censurada de Check Up, ou mesmo o que seria uma laranja mecânica), por outro lado, o fascínio pela profundidade das letras, compreensíveis apenas com o amadurecimento, que permite entender, por exemplo, que “laranja mecânica” era uma referência ao livro de Anthony Burgess e que as cascas plantadas foram as críticas sociais que permeiam a obra.
Nascido no dia 28 de junho de 1945, em Salvador, na Bahia, Raul Seixas foi um dos cantores e compositores de maior sucesso da segunda metade do século XX. Em sua breve carreira, Raul lançou dezessete discos, repletos de canções que ficaram marcadas na memória e no imaginário de sua geração e das gerações posteriores, tais quais Metamorfose Ambulante, O Dia em Que a Terra Parou, Eu Nasci Há Dez Anos Atrás e Cowboy Fora da Lei.
Raul Seixas não gostava da escola, por três vezes repetiu a segunda série e na terceira abandonou os estudos formais. Gostava de música, principalmente do cantor norte-americano Elvis Presley, de quem recebeu muita influência na criação das próprias composições. Mas durante sua adolescência, eram os livros que o fascinavam, entre as páginas dos exemplares de seu pai, viajava pelo mundo da imaginação e sonhava em ser escritor.
Não demorou muito para entender com quantos mil cruzeiros (por mês) se vencia a vida. Em 1962 passou a integrar a banda “Os Panteras”, na qual lançou seu primeiro LP, Raulzito e os Panteras, ao lado de Mario Lanat, Eládio Gilbraz e Carleba. Porém o fracasso do grupo o trouxe de volta à Bahia. Mais tarde, na música Ouro de Tolo, Raul Seixas relata um pouco das dificuldades que passou durante o período que viveu no Rio de Janeiro — “Eu devia estar contente/ Porque eu tenho um emprego/ Sou o dito cidadão respeitável/ E ganho quatro mil cruzeiros por mês/ Eu devia agradecer ao Senhor/ Por ter tido sucesso na vida como artista/ Eu devia estar feliz/ Porque consegui comprar um Corcel 73/ Eu devia estar alegre e satisfeito/ Por morar em Ipanema/ Depois de ter passado fome por dois anos/ Aqui na Cidade Maravilhosa/ Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso/ Por ter finalmente vencido na vida/ Mas eu acho isso uma grande piada/ E um tanto quanto perigosa/ Eu devia estar contente/ Por ter conseguido tudo o que eu quis/ Mas confesso, abestalhado/ Que eu estou decepcionado”.
O reconhecimento nacional veio após sua participação no Festival Internacional da Canção, com as músicas Let Me Sing, Let me Sing, interpretada por ele mesmo, e Eu Sou Eu e Nicuri é o Diabo, interpretada por Lena Rios e os Lobos. Nessa época Raulzito foi contratado pela gravadora Philips e conheceu aquele que viria a ser seu grande amigo e parceiro musical, o escritor Paulo Coelho.
Ao lado de Paulo, Raul compôs muitas de suas canções, no entanto, um dos projetos mais memoráveis da dupla foi a idealização da Sociedade Alternativa, um conceito de sociedade que prezava principalmente a liberdade — “O homem tem direito de pensar o que ele quiser, de escrever o que ele quiser, de desenhar de pintar de cantar de compor o que ele quiser. Todo homem tem o direito de vestir-se da maneira que ele quiser. O homem tem o direito de amar como ele quiser, tomai vossa sede de amor, como quiseres e com quem quiseres, há de ser tudo da lei. E o homem tem direito de matar todos aqueles que contrariarem a esses direitos. O amor é a lei, mas amor sob vontade”.
A Sociedade Alternativa foi inspirada na Thelema, filosofia religiosa criada pelo britânico Aleister Crowley, que pregava a liberdade absoluta. Sob a lei “Faze o que queres, há de ser tudo da Lei”, Crowley incomodou a igreja e os governos vigentes em sua época e chegou a ser considerado satanista, besta 666 e o homem mais perverso do mundo. A sociedade criada por Raul Seixas e Paulo Coelho foi registrada em cartório e tinha sede no apartamento de Raul, mas o plano era construir uma comunidade em Minas Gerais — A Cidade das Estrelas — e viver tal liberdade, ideia interrompida após a prisão de seus idealizadores pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o exílio forçado nos Estados Unidos. Ainda assim, a Sociedade Alternativa ficou gravada em muitas das composições raulseixistas: Sociedade Alternativa, (1974) — “Se eu quero e você quer/ Tomar banho de chapéu/ Ou esperar Papai Noel/ Ou discutir Carlos Gardel/ Então vá/ Faça o que tu queres pois é tudo da lei da lei/ Viva! Viva!/ Viva a sociedade alternativa!”; Novo Aeon (1975) — “Querer o meu não é roubar o seu/ Pois o que eu quero é só função de eu/ Sociedade Alternativa Sociedade Novo Aeon/ É um sapato em cada pé, é direito de ser ateu ou de ter fé/ Ter prato entupido de comida que ‘cê mais gosta/ É ser carregado, ou carregar gente nas costas/ Direito de ter riso e de prazer/ E até direito de deixar Jesus sofrer”.
Considerado o pai do rock brasileiro, Raul Seixas viveu a dura repressão política dos governos militares, foi torturado e exilado, sua arte foi perseguida e censurada, mas isso não o impediu de se tornar um crítico ferrenho da sociedade em que viveu. Nem mesmo seus companheiros de profissão se livraram de seus julgamentos. Na música Eu Também Vou Reclamar, o baiano tece críticas aos cantores Silvio Brito, Ednardo e Belchior, que adotam em suas canções o tom de lamentação — “Mas agora eu também resolvi/ Dar uma queixadinha/ Porque eu sou um rapaz/ Latino-americano/ Que também sabe/ Se lamentar”..
As canções de Raul Seixas sempre estiveram presentes em todos os momentos da minha vida. Com Raulzito eu cantei a insatisfação com o meu lugar no mundo — “Oh! Oh! Seu Moço!/ Do Disco Voador/ Me leve com você/ Pra onde você for/ Oh! Oh! Seu moço!/ Mas não me deixe aqui/ Enquanto eu sei que tem/ Tanta estrela por aí” —; prometi presença eterna à minha amizade mais duradoura — “Pedro, onde cê vai eu também vou” —; justifiquei minha natureza irritante — “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar”. Com Raul Seixas tentei várias e várias vezes, pois como ele bem disse, “é de batalhas que se vive a vida” e “nunca se vence uma guerra lutando sozinho”. Por isso “coragem se o que você quer é aquilo que pensa e faz. Coragem, eu sei que você pode mais”.
E viva Raul Seixas!